Amor simples

Vou te contar uma história, de como o amor pode ser tão simples. De como pequenos gestos são a maior prova desse amor. Eu venho do interior, sabe? Cresci numa fazenda, Fazenda Claros Montes. E lá vivi até a adolescência, quando fui pra cidade grande e lá estudei. Voltei depois de um bom tempo, pra visitar meus pais, Seu Abelardo, vulgo Abel (ele não sabia o que é “vulgo” e brigava comigo quando dizia essa palavra!) e Dona Jacira, a melhor passadora de café da Claros Montes. Infelizmente eles já morreram, que Deus os tenha em bom lugar! Mas antes da história que quero contar, vem a história da história! Meu pai Abel era um agricultor, cujo orgulho que sinto dele só não é maior que minha admiração. Nunca saiu da fazenda e lá aprendeu na escola, a dura vida da lida de todo santo dia, chuva ou sol. A escola em questão não era a escola que eu, você, os outros estudaram. Era o capinzal, era o mato para o pasto, era a cana do canavial. Das 5 da manhã até o fim da tarde, só quando o sol se punha, lá vinha seu Abel, com seu borná, sua enxada e sua garrafa de café, fiel companheira e que sempre vinha vazia. E foi por lá, aos 20 que ele conheceu uma mocinha franzina, toda tímida, a mais bonita da vila ali perto. E foi num São João que meu pai e minha mãe se apaixonaram. Dona Jacira, que na época era a Jacirazinha, tinha medo até de olhar pra cima, mas quando via o moço, alto, forte, moreno queimado da luz do dia, não teve dúvida, tomou coragem e mandou uma amiga dizer a ele o quanto ele era bonito. Ele, com 20, ela 18, dali um ano se casaram. Meus pais foram casados por 50 anos. Não foram 50 anos fáceis: com o tempo, os filhos, a vida do campo, a idade, embruteceram meu pai. Minha mãe, a matriarca da casa (e me lembro que vivia secando as mãos no avental na cintura!) era quem comandava de fato nosso lar. O pai era o sustento, a mãe, a educação. Ambos não sabiam escrever, mas estavam ali, sempre, sempre, sempre, cobrando a mim e meus irmãos, para estudar, para ser alguém na vida.

E o tempo passou, os filhos se foram, vieram os netos e meu velho pai começou a amolecer. Sentava na porta da casa grande da fazenda que ganhou do novo dono quando este comprou a fazenda e meu pai tinha virado o administrador. Foi bom, assim ele descansava. Botava o pé na soleira da porta, sentado no banco velho, seu café do lado, o único vício em vida e ali ficava, horas, a olhar pro mato, conversar com o capataz, os empregados. Quarenta e nove anos já tinham se passado e meu pai, um belo dia me deu a maior lição, que é essa que tô te contando agora: como amor pode ser simples. Ele me chegou um dia e disse: menino, preciso conversar com ocê (ele chamava todos os filhos de menino ou menina, raramente pelo nome). Surpreso, disse tá pai, vamo conversar! Quero dá um presente pra Mãe Preta (o apelido carinhoso do meu pai pra Dona Jacira) mas não sei o que dá. Da outra vez que dei um presente pr´ela, ela ficou injuriada e vexada que eu gastei dinheiro com ela e ficô uma semana sem falar e passá café pr´eu. Fico vexado com isso, má num sei o que fazê! Meu pai era todo bruto e naquele momento, vê-lo ali abanando o chapéu, tirando a poeira, como desculpa pra não me olhar nos olhos, aquilo sim era prova de amor. Queria escrevê uma carta pr´ela! Ótima ideia pai, eu escrevo pro senhor! Mas não, eu quero escrever! E ali, digo a você foi o fim da história da história e o começo da minha jornada pra fazer seu Abel escrever.

Tínhamos uns seis meses antes do aniversário de mãinha, e pus-me a ensinar meu pai. Tinha que ser escondido pra não estragar a surpresa. Minha mãe, curiosa, sempre queria saber o que eu ia fazer ali toda semana. Ficava horas numa sala trancado com meu pai e pegávamos café só na fresta da porta, pra não atiçar ainda mais Dona Jacira. Fique avexada não Mãe Preta, é coisa minha e do menino, meu velho pai dizia. Minha mãe secava as mãos, que nem sempre estavam molhadas, franzia a testa e ia pra cozinha, seu lugar da casa. Uma semana antes do aniversário de casamento dos meus pais, meu pai adoeceu. Uma pneumonia forte que o deixou de cama e abatido. Mesmo assim, ele continuava, porta fechada, só eu e ele, claro, com toda precaução.

E por fim, chegou o dia. Fizemos uma festa enorme, toda família reunida: filhos, netos, primos, tios, quem pode vir, mesmo de longe, pra comemorar. O terreiro estava cheio e tivemos festa até a noitinha. Meu pai, zanzava lento de um lado pro outro, só com o copo d´agua na mão. Enfiava a mão na cabeça, por dentro do chapéu e coçava a testa. Vai lá pai, dá seu presente pra ela! Disse firme. Nunca vi meu pai tremer. Nunca vi tão nervoso. Ele se achegou nela e todo mundo fez silêncio. Toma, Mãe Preta, pr´ocê! Minha mãe pegou o bilhete, papel velho, amassado, meio rasgado, virou, revirou: Mas homi, não sei ler! Pedi pro menino aí ler.

E eu peguei o bilhete, já temendo que ele não tinha escrito nada, afinal o tempo que tivemos foi pouco e eu não era um bom professor. Quando firmei o olho no papel meus olhos se encheram de lágrimas e soluçando, virei pra minha mãe e disse: Mãinha, ele escreveu aqui, “Minha véia, amo ôce!” Meu pai nunca disse que amava minha mãe, nem seus filhos. Sempre soubemos disso, do seu amor. Mas dizer a ela, daquela forma, provou o quanto o amor é simples e está sempre nas pequenas coisas. Abraçamos nossos pais e eles, chorando, se abraçaram. Minha mãe só beijou meu pai no rosto, na sua timidez, mesmo naquele momento. Dois dias depois, meu pai faleceu. Com seu pequeno grande gesto, ele se despediu desse pequeno grande mundo. Aquele pequeno pedaço de papel mostrou, com quatro palavras mal grafadas, o quanto ele - meu pai - carregava ali todo o tempo, seu grande amor.

Dom Torres
Enviado por Dom Torres em 03/04/2022
Código do texto: T7487484
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