TER NETOS
Ter neto é receber a chance de reescrever o projeto, de rever o passado, de corrigir os erros... e se perdoar por eles.
Ter neto é redescobrir a madrugada, ver que ela pode ter um jeito não imaginado e contar a história vivida pelo menino que se foi.
Ter neto é fazer como fizeram os monges ao reescrever a Bíblia por séculos, é fazer como os escritores que corrigiram a história, refazendo frases e enfeitando aventuras, submetendo a realidade ao sonho de que é, afinal, o papel dos poetas na terra.
Ter neto muda teu estado civil. Independentemente do que tenhas feito como pai, tudo muda. Transcende a condição de educador por regras sociais ancestrais e te remete ao rebelde que remanesce em ti. A sabedoria acumulada te permite romper barreiras e oferecer uma visão diferente da que deste a teus filhos.
Ter neto resgata a ternura perdida na tentativa de não errar. Libera a lágrima que lubrifica o olho prestes à catarata; desobriga o relógio na contagem assustadora das horas rumo ao fim.
Ter neto traz a euforia da eternidade não autorizada aos ateus, pois a eles conforta apenas a perspectiva da partícula de DNA que, tal qual o hibisco, reconstrói na primavera a flor que se tornou inútil no outono.
Ter neto é relaxar. É repensar o que poderias ter sido. É te ver criança. É resgatar a perspectiva de compreender o segredo das angústias próprias da infância. É voltar a olhar o mar com todas as surpresas que ele esconde e te perdoar pelas dúvidas que tiveste.
Ter neto é revisitar os escaninhos da memória acomodada na segurança da necessidade de permanecer vivo.
Ter neto é se livrar da angústia que gera a dúvida de se saber amado.
Ter neto é rescindir o contrato da paternidade por transcurso do prazo, ainda que tenha sido assinado por tempo indeterminado.
Ter neto é viver de novo, como se houvesse o paraíso sonhado. É como ter sido perdoado sem carregar a mancha do pecado original.
Ter neto é poder partir tendo cumprido o dever de casa que a natureza prescreveu.
É enxergar a infância perdida se reconstruindo no broto do hibisco que germinou no canto não visitado do jardim de roseiras.
É a terceira chance.