O CHEIRO E O SABOR DO TEMPO
Acaso não tivéssemos memória não perceberíamos o tempo, apenas viveríamos o transitar rápido e volátil do presente. Porém temos memória e, por isto, temos passado. Nosso cérebro é dotado de uma imensa e quase incomensurável capacidade de armazenamento e resgate. O mundo e a vida nos invadem através dos sentidos. Inúmeros são os estímulos que nos cercam no mais simples do dia a dia. Estímulos visuais, auditivos, táteis, olfativos, gustativos e proprioceptivos. Muitos desses estímulos acabam guardados na chamada memória de longo prazo. E é nesta espécie de gaveta subjetiva onde se encontra preservada uma parte de nossas infâncias e meninices. Aqui e acolá quando a abrimos lá está aquele mesmo cheiro marinho de sargaço das praias de outrora, bem como o sabor dos refrescos de mangaba da casa da avó.
A sedimentação das vivências é lastreada de sensações e sentimentos, bem como a percepção (porta de entrada da memória) é colorida por nossas emoções e fantasias. Sim, o pano de fundo de nossas experiências com o mundo e o espetáculo de viver é pura sensitividade, afinal nosso corpo é mnésico. O externo no invade pelos orifícios intercambiantes do corpo e da pele. É pelos olhos, narinas, boca, ouvidos e epiderme (incluindo o toque e o tato) que vivenciamos o mundo exterior e o transformamos em mundo interior. Registramos nosso transitar na vida e o acumular de nossos apontamentos chamamos de lembranças e recordações. É como escreveu Marcel Proust:
"mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, - sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação".
Sobrevivemos no persistir de nossas memórias. Creio mesmo até que somos um desdobramento do encontro entre a memória e o sonho. Nossa biologia pouca serventia teria se não fossem ambos. Somos um espaço entre o memorar e o devanear onde nos fazemos subjetivamente como pessoa e por onde transitamos no percorrer de nossas vidas.
Isto o que sou: um complexo inteiro de imagens, sons, aromas, sabores e sensações várias chamado Joaquim. Trago em mim a brisa e a maresia matinal da praia de Boa Viagem, a fragrância do English Lavander, o paladar gaseificado da laranjada Crush, os acordes cadenciados de To Sir With Love, os cabelos endurecidos de laquê, o brilhar da camisa branca embaixo da luz negra, o adocicado colorido do drops Dulcora, o exalar misto de vegetais e tintas impressos da Sodiler do Aeroporto, o gosto róseo do pudim Royal, o sabor mentolado do primeiro beijo...
Meu menino invisível se guarda como as silenciosas páginas fechadas de um livro à espera de um vento que as folheie subitamente. O que antes me cercou é agora presença quando o etéreo se faz carne. E o que lá um dia esteve mais uma vez hoje está. E o menino se ressuscita no homem, enquanto o homem se faz de novo menino. Reinvento-me, pois, no recuperar de mim. Este é o segredo e a magia da memória: levar-nos repentinamente aos sítios de antigamente