Infame inteligência
Alta madrugada. Noite escura.
Defronte ao jardim, perdido em mim.
Olhar fixo em nada.
Sorrateira sombra perfaz um oito em minhas pernas.
Como um meteoro adentrando a atmosfera, irrompo a medíocre matéria que neste mundo me resume.
Entre ronronares e felídeos sonidos, indaga-me sóbrio animal:
- Que importante questão te aflige ao ponto de prostrá-lo em profunda escuridão de avançadas noturnas horas?
Nada respondo. Afinal, de que entenderia das anímicas mazelas humanas um simples gatorro?
Insistente, o intrometido felino provoca-me:
- És presunçoso ao ponto de achares que tua espécie, tecnologicamente dominante, nada tens a aprender com as demais, de teu lar coabitantes?
Bem dizem serem astutos tais mamíferos... Este, retirou-me do ensimesmamento e atiçou–me a inata vaidade.
- Quem és tu, presunçoso vivente, para quereres indagar-me a respeito das profundas questões hominais?
-Sabes o que represento? Os filhos do Altíssimo, únicos criados à sua imagem, cocriadores do mundo que habitaste. Desbravadores de oceanos e continentes. Dominadores por excelência, subjugamos os bárbaros de nossa própria espécie aculturando-os segundo nossos costumes. Domamos e treinamos os demais seres, a fim de servirem aos nossos objetivos de crescimento social. Controlamos as forças naturais, represando e desviando o curso das águas; derrubando florestas; criando pastos para vastos rebanhos a nos servirem de alimento...Senhores da inteligência e criatividade, unimo-nos em sociedades avançadas; povoamos e adaptamos o mundo à nossa vontade, para o nosso bem estar; criamos cidades de concreto; erigimos arranha-céus; construímos aves de aço; eliminamos distâncias geográficas, culturais e informacionais. Por meio de avançadas tecnologias, conquistamos o espaço; e demos acesso instantâneo a todo e qualquer tipo de informação existente a todos os seres de nossa espécie.
- Queres mais? Temos o poder de curar, matar, criar ou modificar. Somos os senhores do mundo, superados apenas pelos senhores do Universo ainda desconhecido.
Cessada a ególatra exposição, o pequeno felídeo, sem se sentir aviltado ou ultrajado, dirigindo complacente e piedoso olhar ao homem à sua frente, pesou:
- Impressionado estou com tamanhas conquistas. Realmente, tua espécie tornou-se tecnologicamente superior às demais.
- talvez por atraso e ignorância não compreenda elementos tais como ciúmes, ira, obsessão, ganância, guerra, preconceito, dentre outros que também os tornam ímpares dentre os viventes planetários.
- Assim como indecifrável é, para os demais mortais, por que usais o conhecimento para destruir as demais espécies e ecossistemas, necessários ao equilíbrio do planeta e à própria sobrevivência humana, olvidando a questão mais básica da existência: a necessidade de manter a harmonia entre tudo o que há no planeta para que se mantenha a vida.
- Por fim, explique-me, se possível for, o que leva à espécie humana a ser a única que se condena conscientemente à extinção destruindo seu mavioso lar.
Sem ter o que dizer. Levei o pequeno ao colo dando-lhe o merecido carinho e, envergonhado, pensei: “se um dia reencarnar, quero voltar como um gato”.