O SAL DA VIDA

O mundo que baniu a poesia é, pois, o mundo do espetáculo. Esta frase não é minha, mas sintetiza muito. Zygmunt Bauman chama estes atuais tempos multicoloridos, vitrínicos, globalizado, rápido e amostrado de "Modernidade Líquida". Liquidez não tem forma, molda-se conforme o recipiente em que se encontra. Liquidez é sinônimo de fluidez, escorrência e facilidade. Remete à abastança, fartura e abundância. O que é fluído flui, escorre entre os dedos, move-se com facilidade, transborda e vaza.

Vive-se hoje, nos dizeres de Michel Lacroix, o culto das emoções fortes, vibrantes, intensas e adrenalínicas. Tudo parece ter ficado tão ligeiro, tão fast, e por isso mesmo tão superficial. Afirma Bauman - se diz eu te amo como quem diz bom dia. Isso me faz, pois, indagar qual o lugar da poesia - arte por excelência contemplativa e introspectiva - nos dias que se passam, ou melhor que se escorrem?

Drummond de Andrade não queria ser um poeta de um mundo caduco. Então, onde pode o poeta se agarrar em meios as árvores da floresta da cultura de massa? O poeta Donizete Galvão entende que o poeta é aquele que atravessa as coisas "para melhor absorver-lhes/a duração e o gosto". Mas os sabores hoje se dissolvem com uma rapidez maior que a nossa boca em sorver o próximo gole. Os moinhos de vento, com quem lutava Quixote, são agora moinhos de carnes e mentes.

Passamos a depender de máquinas e, apenas enxergando imagens e o ligeiro das coisas nos coisificamos. Em meados do século passado Marcuse já nos alertava que um homem forjado nas entranhas de uma sociedade tecnológica seria consumista, conformista e acrítico. Perde-se a essência da vida em troca de suas aparências. Uma sociedade cada vez mais industrial e consumista em seus avanços constrói e cria falsas necessidades que visam integrar o indivíduo ao próprio sistema de produção e consumo. Mas, Marcuse, assim como tantos outros e ideias, atitudes e gestos, é do século XX, o século passado, e na atualidade da dita pós-modernidade o ontem é antigamente.

Temo o dia em que não haverá mais poetas. Sem poetas quem haverá de traduzir a poesia da vida? Quem nos auxiliará a retirar o sabor insosso de nossas bocas em um cotidiano mecanizado de encargos e gestos? Quem nos recolherá da inércia dos concretos para o transbordar dos sentidos e nos fazer mergulhar na subjetividade objetiva de todas as coisas? Quem descortinará a trama urdida que se oculta por detrás dos arremedos paisagísticos da realidade? Quem nos afetará a alma e transformará o olhar em afeto? Quem despertará, pois, nossa preguiçosa sensibilidade de seu sono bege onde os sonhos se pensam realizar no shopping da próxima esquina?

Repito com Manuel Bandeira que "estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado/do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor [...] Quero antes o lirismo dos loucos/o lirismo dos bêbados/o lirismo difícil e pungente dos bêbados/o lirismo dos clowns de Shakespeare". E eu o complentaria dizendo que quero a leviandade dos poetas e a carne viva das entranhas da vida. Quero o mistério e o desnudar abrupto dos segredos. Prefiro o encanto sinuoso das curvas à certeza linear das retas. Ah! como quero as entrelinhas, o subentendido, o suspiro silencioso da mudez, a sutileza débil do abstrato, o palpitar latente das estrelas e o que se omite na clareza dos escuros. O que está fora de nossas vistas ali está para um dia ser visto.

"A poesia não quer adeptos - dizia Garcia Lorca - quer amantes". Não é nos livros que a poesia está. Ela está no pó da terra de nossas caminhadas e no fruir do sal das marinas distantes. A moral de um poeta é o fogo do amor que o consome e se exalta. A poesia não é e nunca foi feita de regras e normas. Ela é solta e desperta, e ainda mais se liberta quando se mostra em palavras a pureza impura das formas. Um verso é o reverso da realidade. É a vida colocada de cabeça pra baixo.

Os antigos já sabiam que um mundo sem poesia seria um mundo sem beleza. Para Platão o belo não depende dos objetos e da matéria, pois o belo do mundo tocável e do julgamento empobrecido dos homens é apenas um simulacro da beleza verdadeira oculta das coisas. Um poeta é, assim sendo, aquele que vê a vida com um olhar de estrangeiro.

Dizia Lorca que "todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas". Certo está e escreve Novalis ao afirmar que a poesia é o autêntico real absoluto. E que quanto mais poético, mais verdadeiro. Dai-nos, então, pois, a poesia das ruas e dos meandros, das intimidades caladas das superfícies, dos gemidos das coisas mortas e da insistência do menino que vê o passar da vida como o adejar transitório de uma borboleta.

Dedico minhas inquietações e desassossegos a todos os poetas do ontem, do hoje e do porvir. Sem eles o mundo seria o que apenas é: uma coisa chata metida em uma esfera redonda que apenas gira, gira, gira...

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 28/03/2022
Reeditado em 28/03/2022
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