NOTURNOS

Você já teve dias em que acordou com vontade de não ter de acordar? Que tem amanheceres para onde nossos sonhos não transbordam? Que são dias como esses em que acordamos e não tem ninguém nos esperando do outro lado? E que desperto nada mais nos resta que senão se resignar a transitar por objetos e corpos no cumprimento matinal das obrigações corriqueiras? Você já desadormeceu com aquele gosto um tanto amargo na boca de quimeras mortas? E que você escorrega vaporizante pela vida na expiração dos minutos passageiros? Tem dias que a noite deveria ser o ponto final do dia e não uma vírgula pausante entre o tardio de um dia e o alvorar imaturo de mais um outro dia. Por que nascem os dias se eles se findam no entardecer dos poentes próximos? Do que nos servem as madrugadas senão para celebrar o fenecer do ontem na artificialidade inventada dos homens? Se a noite é o sepulcro do dia, o despertar dos músculos e dos sentidos é o velório de mim.

Ah, noite alada! Por que seu despedir é tão invisível e repentino assim? Para onde vás quando me deixas? Tu que antes era tão imensa e enormemente escura, e que trazias contigo o apagar das luzes no acender dos sonhos, onde depois te escondes novamente? Já te procurei tanto e por diversos cantos e cômodas do quarto. Ao fugires de mim carregas contigo todas as promessas que faço aos travesseiros; todas as aventuras, destinos e mulheres que jamais terei.

Ah, enganosa noite! Faz-me no teu chegar o mudar dos pensamentos e no teu desaparecer o hibernar do menino. Recolho-me à cama sem terços ou rezas. Apenas as sombras e os fantasmas me acompanham neste descer de mim no entorpecimento da carne e dos nervos. Os relógios param seu tempo, enquanto vou-me afogando nas brumas enevoadas das imagens que carrego e as que nem sei que carrego em mim. Ao distrair-me dos meus acordados descortino-me por inteiro, e quase como que assustado me transformo em um fantasma de quem sou, uma essência solitária que me espanta em seus desabrochamentos.

Os dias são longos e as noite são curtas e apressadas. Quero ter a pressa da noite, pois meus sonhos são afobados. A claridade dos dias poda minhas apetências. Os escuros da noite não. Na calada das sombras e na escuridão do quarto caio no desvario das minhas alucinações mais endoidecidas. Lá sou rei; lá sou Aladim e espadachim; lá sou Simbad a navegar por mares e monstros; lá sou herói e sou bandido, sou mais épico do que Perseu. Lá sou tudo o que quero ser, sem renúncias ou consequências. Lá não sou incerto, é certo. Lá sou o escolhido e o preferido dos deuses. É na quietude da cama que me transcendo e sou pleno: o mais que perfeito que posso de mim.

As noites são feitas de pálpebras, que descendo levemente e calmas me enterram o dia e suas claridades. Embriagado de sonolências desperto-me, e despertando desnudo-me das máscaras e dos disfarces. Agora, totalmente desmascarado, bizarro e extravagante, percorro meus interiores como um forasteiro recém-chegado de um país estrangeiro. Se a noite em um quarto de abajur hibernado é prenhe de breus, por dentro clareio-me e amanheço. E assim embarco em busca de auroras que as manhãs não me dão. Puro, limpo e desobrigado, alheio ao fora de quem me despeço, perco-me do dia para me achar na juventude da madrugada que o anoitecer antecede.

Na substância do tempo que a métrica dos calendários e dos relógios não marcam, ausculto os sussurros e ruídos de minha clandestinidade. O dia se foi e com ele suas miragens. A noite é verdadeira e sincera. Com ela se vai o colorido das paredes e fica o céu decorado do teto que me encobre e engole. É na madrugada que minhas metades se encontram. Juntas, escrevo cartas às estrelas e recolho os mortos, enquanto sonhos povoam o embrenhar de mim e de meus mistérios.

Minha alma pulsa por detrás da letargia. É no torpor da sonolência e no entorpecimento dos nervos que sou duradouro, perpétuo e imortal. Não matem a eternidade ao me acordar. Deixem-me sossegado aqui no canto beirante do quarto e do mundo, pois cá meu sono é minha pátria e minha aldeia. Sou todo o universo quando durmo. Não quero acabar porque somente já é dia. Não trago mais vontades de vestir aqueles mesmos velhos trajes e trafegar por aí farsante, agora que depus os disfarces e continuo a criança que sempre fui. Sou como Fernando Pessoa: entre mim e o que há em mim corre um rio sem fim. Não me quero desaguar na manhã deste outro novo dia, afinal todo o dia é tudo tão mesmo dia que não há um dia sequer que não queira que seja outro novo dia.

Ah, as noites e suas negruras! Existem aqueles que as temem e os que nelas vagueiam. Prefiro a cerração e o bailar das sombras do que as linhas nítidas das manhãs. Sou mais das horas dúbias do que a exatidão reta das claridades, pois é no desaparecer do sol que solto meus próprios vampiros e eu mesmo me transformo em um espectro a afugentar meus assombramentos diurnos. Sou filho do ventre da noite. É nas suas entranhas que habito isento e sereno, sem os queixumes corriqueiros e os pecados contidos dos dias. Nas noites dos abajures calados tudo que me é externo se dissolve, e encoberto de escuros reapareço-me por detrás das costelas.

Há noite de que não devíamos acordar. Dormir abraçado comigo, esquecido da brevidade da vida e de seus cemitérios. Dormindo penetro nos subterrâneos daquele que leva o meu nome e sobrenome. Dormindo, sonho - sonho sonhos de menino. É lá que tenho o colo da minha mãe e de onde miro o encantar do mundo que um dia me desencantei. Há noites em que não devíamos acordar, apenas continuar...

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 24/03/2022
Reeditado em 24/03/2022
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