O uirapuru carioca


        O jornalista Carlos Lacerda um dia escreveu uma crônica com este título: O Rio já nasceu cidade.
       
Digo e repito: uma das mais belas páginas que já li, até hoje, sobre a Cidade Maravilhosa; uma declaração de amor de um carioca ilustre à sua cidade natal.
        Quem desejar conhecê-la na íntegra, procure-a nas entranhas de O cão negro, um livro que reúne dezenas de inteligentes escritos do saudoso jornalista guanabarino.
        Para quem não se lembra dele, ou não o conheceu, Carlos Lacerda foi governador do antigo Estado da Guanabara, de 1960 a 1965.
       Político polêmico, corajoso, arrojado, temido; orador vibrante e destemido; jornalista competente e erudito; escritor criativo, e, quando queria, romântico.  Foram estes os ingredientes que fizeram de Carlos Lacerda um brasileiro respeitado pelos seus contemporâneos. E recordado por aqueles que vieram depois dele.
          Seu verbo implacável e sua pena que funcionava como um bisturi afiado, apearam do poder - pasmem! - o presidente Getúlio Vargas, incontestavelmente o maior político brasileiro de todos os tempos.  Só o Juscelino chegou perto do GG.
          Quando Lacerda discursava no radio, na TV ou no Parlamento, o Brasil inteiro parava para ouvi-lo. Chamei-o, certa ocasião, de o uirapuru carioca. O uirapuru, como se recordam, é um pássaro da Amazônia que quando canta, todos os demais passarins silenciam; todos querem ouvir  seu sedutor gorjeio.
          Seus adversários políticos chamavam-no, entretanto, de "O Corvo". Consideravam-no um sujeito agourento; fabricador de crises; mensageiro e responsável direta ou indiretamente pelas tragédias políticas que desabavam, ou que podiam vir a desabar sobre o Brasil. 
          Sem meias palavras quando acusava ou defendia, Lacerda era aplaudido e apupado; elogiado e criticado; amado por milhares e por milhares odiado. Chamaá-lo de caustico, sim; de corrupto, jamais.
          Nada, porém, manchou-lhe o brilhantismo; foi brilhante e autêntico até a sua morte, em 21 de maio de 1977.         
         Punido pelo golpe militar de 1964 - impedido, portanto, de fazer o que mais gostava, política - Carlos Lacerda viveu seus últimos anos cultivando rosas, no seu sítio de Petrópolis.
          Não estarei mentido se disser que, no momento, ele faz falta à vida pública nacional.
        Principalmente quando os brasileiros descentes se mostram e se declaram envergonhados com o plantel de políticos que, de uns tempos para cá, tomou de assalto o governo da nação brasileira, em todas as suas esferas de poder. 

               ***   ***   ***

        Mas não é sobre  Carlos Lacerda, o político, que pretendo escrever. Embora reconheça ser difícil não dizer alguma coisa sobre sua gloriosa trajetória de homem público. Me satisfaço, porém, com o que até aqui escrevi.
        Minha crônica é sobre Carlos Lacerda, o jornalista, autor de O Rio já nasceu cidade que, redigo, é uma declaração de amor à sua encantadora terra.
           Vejam algumas frases que extrai - com dificuldade, porque todas são ótimas - da sua crônica.

        "O Rio que eu amo não é necessariamente o dos guias de turismo...
          "O Rio fala errado? Talvez. Mas quando se reuniu em São Paulo o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, ficou oficialmente decidido que o sotaque preferível para cantar música brasileira (inclusive as músicas traduzidas) é o carioca. O carioca de Antenor Nascente."
          O Rio "é uma das grandes cidades do mundo nas quais existe a idéia de que a amizade é força essencial à vida.  O que no Rio por dinheiro nenhum se consegue, com boa palavra se alcança. Ou um palavrão, dito com ternura."
           "No Rio todo mundo é companhia. É uma grande cidade na qual não veio morar a solidão."
           "Faça um favor, venha um dia ao Rio só para ir à Ilha de Paquetá, "que começa neste mundo e não sabe onde acabar".
          Se lembra até das Cagarras - "que vivem - escreve com sutil ironia - no medo de um erro da imprensa."
          O Rio "é meio gente, meio peixe."  Para, em seguida, fazer esta observação: "Quem se viu no mundo cidade em que as pessoas atravessam a rua de biquíni defronte de repartições públicas, bancos e outras instituições decorosas?"
          O carnaval. Defende maior presença do povão no carnaval do Rio. Para ele, não basta ficar espiando os outros pularem: "Assistir ao carnaval é uma forma de matá-lo por falta de participação."
        E se declara frontalmente contrário ao que chama de carnaval "oficializado, protegido, subvencionado, institucionalizado"; Como, aliás, está acontecendo, lamentavelmente, em Salvador.
          Levaria muito tempo transcrevendo as frases e os pensamentos de Lacerda sobre os bairros, subúrbios, ruas, o Pão de Açúcar, o Corcovado, em fim sobre tudo o que faz da bela Rio de Janeiro, sua paixão, uma cidade singular. 
        Temendo não trazer para esta página o melhor da crônica "lacerdista", renovo o convite para que procurem-na em O cão negro.
          Posso muito bem imaginar o que o Carlos Lacerda estaria escrevendo sobre o momento difícil pelo qual passa, agora, o Rio de Janeiro, com suas praias, seus bairros da Zona Sul e Zona Norte, suas favelas e seus morros, seu subúrbio, envolvidos pelo ódio e banhados de sangue.
          De sua privilegiada caneta sairiam longos e inflamados artigos, lamentando a tragédia que se abate  sobre sua cidade. Mas com certeza repetindo o que, enfático, ele diz na sua crônica, ou seja, que "o Rio renasce, a cada manhã de sol", para perdoar "até os que o fazem sofrer".
          Não deixando, contudo, de sentar o cacete naqueles que ousassem falar mal da cidade onde, no dia 30 de abril de 1914, na Rua Alice, 41, Laranjeiras, ele nasceu, e, durante mais de meio século, viveu intensamente...

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 22/11/2007
Reeditado em 14/04/2021
Código do texto: T747957
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