Sobre atos de fé

– Faça um ato de fé, menina...

Ela continuou interrogativa, agora não entendendo direito o que ele queria dizer com ato de fé.

– Ato de fé você faz todo dia. Quer um exemplo?

O olhar estampou certeza.

– Ato de fé é assim. Se você entra no ônibus, você não pede a carteira de habilitação do motorista. Pede? Pois é. Você faz um ato de fé.

A cena se passou na universidade no tempo em que eu ouvia grandes conhecedores. O mestre, na verdade, pedia apenas paciência. Ele queria que, provisoriamente, aceitássemos uma afirmação dele, que seria depois esmiuçada, detalhada. Era uma questão de paciência. Só isso.

A cena me veio à mente diante do caso do falso médico. Aquele que lá em São Paulo servia a uma concessionária de rodovia e mandou que amputassem a perna de um homem vítima de engavetamento. Primeiro, noticiou-se que a amputação se efetuara no local; depois, ficamos sabendo que a cirurgia fora feita por um cirurgião de verdade, em hospital de verdade.

O fato é que somos alertados a duvidar até dos médicos que se nos apresentam. Já não temos que nos preocupar, como costuma acontecer, em ouvir uma segunda opinião médica, mas, sim, em primeiramente nos certificar se o médico consultado é realmente médico. Sinal de todos os tempos, em que não faltam charlatães! Embusteiros!... Que a humanidade não vai melhorar, parece certo. Ligamos a televisão e assistimos, em tempo real, aos horrores de uma guerra, que ceifa tantas esperanças.

A verdade é que precisamos, sim, fazer esses atos de fé, ou passaremos uma vida neurótica, onde se desconfia de tudo e de todos. Mas – convenhamos – contratar-se alguém com um diploma falso e, pelo que se sabe, com registro profissional em andamento, é, sem dúvida, sinal da mais pura desídia e merece todas as averiguações e sanções cabíveis. Sanções, eis palavra em moda, por causa dos castigos econômicos impostos ao eslavo, que nos tira a paz com essa tal de operação militar especial – eufemismo, para os russos, e profunda ironia para nós, ocidentais, que a tudo assistimos aterrorizados.

Tantas vezes fazemos atos de fé. E os mais simples, os mais humildes são contumazes na prática. Lembro-me aqui de outro episódio, na esfera bem particular. A fila do cachorro-quente não era grande, e, rápido, um amigo e eu fomos atendidos pelo vendedor, que preparou a iguaria com máximo carinho. Desconfiado, olhou para meu amigo e disse que o conhecia, pois se consultara com ele alguns dias atrás, com problema nos rins. O amigo continuou a conversa, e disse que lhe passara muita água e que era para não se descuidar no tratamento. E, assim, com as vestes de doutor, o amigo, risonho, vangloriou-se do tino, e fomos embora.

Como o amigo mora perto da carrocinha de cachorro-quente, passava sempre por lá e recebia o carinhoso “boa-noite, doutor” daquele homem simples, que saudava, com reverência, o doutor que lhe acenava. Fiquei sabendo por telefone e opinei que deveria corrigir-se; não era certo, não era justo...Uma brincadeira – ainda que não venha a causar dissabores – tem seu prazo de validade e não devemos passar pelo que não somos e muito menos deixar uma pessoa humilde iludir-se com a possibilidade de que possa contar conosco numa situação emergencial, em que não poderemos ajudar. É claro, amigo e possível leitor, que disse isso muito nas entrelinhas, pois não queria deixar, nem de longe, a possibilidade de que estivesse passando um sabão. Foi conversa cheia de “talvez” e de “futuros do pretérito”, que, acredito, tenha aprendido a usá-los nos momentos adequados. Aquele vendedor fazia seu reiterado ato de fé, e era preciso desconstruí-lo. Saí vitorioso, como o soube brevemente

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Vêm aí as eleições... Quantos não farão seus atos de fé! Olharão bonitas histórias em santinhos, na tevê, na internet e correrão às urnas, e depositarão, no toque de “confirma”, esperanças, sempre esperanças de que algo vai melhorar. Perigosos atos de fé... É possível que por trás daquelas histórias se escondam falsos projetos, se escondam projetos que amputam nossas esperanças. Daí a necessidade – sempre, sempre – de ver o que o candidato quer (e fará!) com a educação, com a formação das crianças, com a formação de pessoas educadas, que leiam e interpretem melhor o nosso país e este mundo de meu Deus.

Creio em Deus. Ah, como creio! E aqui faço meu renovado ato de fé. Sem interrogar, sem questionar. Sequer questionar as guerras, as doenças, os sofrimentos. Com Santo Agostinho, reforço: “Não temos como dizer o que é Deus; se Ele for inteligível à razão do homem, então não é mais Deus”.