Ante Os Portões de Andora* (seguido de "De repente, 30 – Pt. 2")

"[...] É preciso que haja homens que tenham descido a esse poço sombrio e que, ao voltar à superfície, declarem que não viram nada. É preciso que esse homem se embrenhe na profundidade da noite, nas trevas espessas, sem nem sequer ter o auxílio da pequena lâmpada de mineiro, que apenas ilumina as mãos ou a asa, mas que cria um estreito fosso entre si e o desconhecido."

Antoine de Saint-Exupéry, "Voo Noturno"

O coração humano pode oscilar entre um ruidoso e intrépido abalo sísmico de número 9 na escala Richter (5 já faz um estrago significativo) até a produção de um silêncio mortal que assombra qualquer cemitério após a meia-noite. Ter ciência dessa característica dos sentimentos humanos não faz de ninguém um conhecedor da psique; no entanto, já pode trazer algumas pistas sobre o porquê de algumas atitudes serem notoriamente assustadoras...

Há não muito tempo – por falarmos nisso – eu ouvi o relato de alguns alunos que nunca tinham me visto antes e resolveram me contar sobre um estranho professor que contava histórias sobrenaturais ao fim de algumas de suas aulas. Eles escancaravam seus olhinhos, junto com seus assombrados coraçõezinhos, ao falar que "quando ele [o professor] começava a contar essas histórias de pavor e assombro, os pés de cada estudante presente na sala se juntavam, ao passo em que um crescente frio na barriga começava a se apoderar da gente, chegando a nos paralisar de medo, por alguns instantes. Mas instantes eternos esses!"

Eu não escondi minha curiosidade. Eu simplesmente pedi que continuassem seu relato sobre aqueles momentos trevosos, híbridos (um misto de assombro, curiosidade e sentimento de impotência ante o andar das histórias, que tinham um fundo de verdade, um fundo significativo de realidade). Eles não conseguiam terminar seus relatos; algo parecia impedi-los, pois trazia à tona um sentimento de pânico, de temor muito grande. "Mas que diabos esse professor fez para incutir esse pavor tão íntimo nos pobres jovens?", pensei. A resposta para essa pergunta não seria facilmente revelada. Porque algo simplesmente obstruía a passagem que levaria até ela. Era uma espécie de barreira mental, sufocante, dolorosa. Esse professor conhecia, com efeito, a alma humana, em toda a sua extensão. Eu me senti muito próximo dele ao me dar conta disso. Muito próximo dele mesmo. Chegando a ter a estranha sensação de que eu já tivera contato com ele nalguma daquelas noites de ventania de 1991, no quintal de casa, lá, na Entrada de... (não posso revelar o nome do local; queiram, por favor, me perdoar por isso, sim?).

O mês de março tem uma importância muito grande em minha vida sentimental. Hoje, dia 23 de março de 2.022, completar-se-ão, por volta das 23h, três décadas de meu primeiro contato íntimo (o primeiro de alguns beijos com que A Falecida me presenteou) com Ela. Eu sinceramente não tenho muito mais a falar sobre isso; são trinta anos e, nesse ínterim, minha vida passou por inúmeras transformações. Que, no entanto, nunca chegaram a mudar minha concepção do tempo: não me interessa se se passaram 30 segundos, 30 avos de segundo ou 30 mil anos. O tempo, para mim, não existe. A (relativa) facilidade com que eu consigo acessar eventos em minha memória de longo prazo parece fazer com que eles tenham simplesmente acabado de ocorrer. Chamem a isso de ilusão mnemônica, temporal, o diabo que acharem melhor. Mas, mesmo assim, eu continuarei achando que o tempo é mera convenção humana – ele simplesmente não existe e pronto. Porque não existe o Passado: apenas as lembranças que cada ser humano tem dele. E o futuro já é parte de outra história. "W., isso era mesmo necessário?"

Saio desse exercício de produção textual com ainda algumas questões que não pude fazer. E que se acumulam, junto a outras, que faço antes de ter conhecido a Falecida, lá, na altura do número 1.643 da Avenida 9 de Julho, em Poá (SP). Quanto a Andora, é preciso imaginá-la em franca atividade de (e)levar a Luz onde as Trevas avançam. Tal como Pandora, após ter aberto sua Caixa, ter liberado os Demônios que povoaram a Terra por algum tempo mas que foram dominados pela Esperança, na versão de Nathaniel Hawthorne para a lenda grega. Ademais em mais é preciso imaginar a Falecida feliz, na condução de sua atividade tão importante quanto a dos médicos. Vestida de branco e alheia às lembranças que seu 5º namorado ainda mantém dela. (E não é igualmente emblemático notar que a soma dos algarismos 1+6 e 4+3 = 7? E que a soma dos quatro é igual a 5? A questão numerológica entre esses valores talvez possa ser vista em algum desses dias que finalizam março de 2.022 e dão início aos primeiro trinta de X anos que ainda virão... Trazendo mais revelações externas que se agregarão a revelações internas com as quais eu tenho recebido após o Ano Zero...) É preciso imaginar W. feliz.

NOTA

* Andora ("Alma Gloriosa"**) é uma lenda sobre uma mulher homônima que viveu por apenas quatro décadas e possuía uma beleza e uma inteligência jamais vistas por nenhum mortal. Além de ter um coração cuja bondade ultrapassava o mais reto e santo dos seres humanos. Costuma-se dizer que ela se apresentava de diversas maneiras,conforme quem a visse: mulher branca, de cabelos lisos, pretos e compridos; mulher negra; mulher oriental etc. Fiz uma referência (conhecida por raríssimas pessoas atentas) ao début album do Pink Floyd: "The Piper At The Gates of Dawn" ("O Flautista Ante Os Portões da Aurora"). Inconscientemente, há uma referência (em nível mais profundo, pois) ao título da canção "At The Gates Of Delirium", do Yes (presente no clássico disco "Relayer", de 1974 – ano de nascimento dA Falecida).

** Cf. Significado do nome Andora. Disponível em: <https://bit.ly/3qqDK5C>. Acesso em 23 mar. 2022.