UM EPISÓDIO DE DESREALIZAÇÃO

Nunca imaginei que a desrealização fosse além do sentido metafórico e hiperbólico da palavra. É certo, pois, que vivemos as múltiplas desrealizações do cotidiano: hoje, por exemplo, desejei um sol radioso e uma mensagem singela de amor via torpedo. Lembrei com carinho e necessidade dos quintais da Casa de Verderval Ferreira e das orquídeas que matizavam a varanda da minha avó.

Anteontem, vivi um processo de desrealização que vai muito além das confabulações da literatura que escrevo e das derrotas cotidianas. Óh! Compreenda-me os deuses e os mortais que nem sempre possuo a capacidade inventiva daquele que está assentado sobre o globo.

Parei num pronto-socorro de um hospital bem equipado. Talvez a glicemia voltara a ser um problema. Precisaram descartar as hipóteses de um acidente vascular cerebral ou até mesmo a existência de um aneurisma.

A minha vista cobria-se de um véu. Não podia mensurar os espaços. Tudo era tão irreal e distante de mim. A enorme aliança no dedo do neurologista reluzia tão pouco que cogitei até quando durará as suas núpcias, o baile da noite, se a casa já não estava repleta de damas da noite ou se por lá imperava uma única rosa.

Nos corredores da Emergência, várias placas indicavam lixeiras para descarte de materiais cirúrgicos. Reconhecia os sinais, mas não via o que pudesse ser descartável. Deveríamos descartar o menos possível...

Com dificuldade de um mundo míope, disquei o número da minha terapeuta, que logo sentenciou: provavelmente você sofreu uma "desrealização", fruto de estresse e ansiedade.

O clonazepam colocou tudo mais ou menos no lugar. Mas o meu espírito assombrado insiste em lembrar das horas de pavor e agonia que é dar de cara com a desrealização. Pior, vê-la pelos cantos, aos poucos, aproximar e distanciar-se de mim sem qualquer cerimônia. Sentir que falta muito e que o muito talvez seja tão pouco que signifique tão somente a vontade de ser feliz e amar.

De realizações literárias minha vida está cheia. O que me desrealiza é essa puta saudade do meu amor que ainda não retornou com a máquina do tempo e nos fez regredir para os quintais da Casa de Verderval Ferreira. A vida pede faz de conta.

Italo Samuel Wyatt
Enviado por Italo Samuel Wyatt em 23/03/2022
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