O BARRO DE QUE SE FEZ A ALMA
Biblicamente fomos modelados a partir da argila do solo. Do pó da terra fomos feitos e ao pó um dia retornaremos. Do sopro divino recebemos o fôlego da vida, e assim o ser humano foi forjado alma vivente.
O poeta mato-grossense Manoel de Barros dedicou grande parte de sua existência a buscar o mistério irracional das coisas e da vida. Seus achados, dizia, vinham da ignorância. Gostava de ver o que não aparecia. Segundo ele: "tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir". De miudezas e excessos Manoel de Barros lega um agigantado acervo sobre a alma humana e seus assombros frente ao mundo.
A poesia manoelesca é a alma feita em palavras e de palavras revelando a alma. Seu olhar muito mais que olhar o mundo desnuda o profundo, o profundo cavernoso com suas complexidades, paradoxos, paixões e seus pasmos. O psiquismo humano, demonstra Manoel de Barros, é permeado de perplexidades.
Barros pode ser chamado do poeta das coisas pequenas, comuns e desapercebidas. Há, demonstra ele, poesia em tudo, até nas baratas e nas formigas. Ao valorizar o insignificante sua obra transcende aos escritos urbanos do cotidiano. E ao fazê-la em linguagem simples ele parece reverter as palavras aos seus contrários e constantemente reinventá-las em ressignificações nunca dantes experimentadas. E isso faz dele um poeta original que retira até das pedras o suor poético dos seus suspiros. Toda a vez que o leio me lembro das minhocas do meu quintal.
"O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê", confessa o poeta. De seus aparentes simples versos temos o insuflar da alma - esta coisa invisível que movimenta o mundo. A alma, demonstra Manoel, está sempre presente nas miudezas dos pequenos gestos. Se fomos criados da argila do solo, somos então feitos da mesma terra onde brotam plantas e vegetais. Do barro da natureza somos feitos, e feito somos de pó e de cascalho.
Retrato do artista quando coisa
(Manoel de Barros, Editora Record)
06.
“Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quando as soberbas coisas ínfimas.”
11.
"A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas".