A SOLIDÃO DA DISTÂNCIA SIMULADA
Quase ao acaso (não há, segundo Freud, acaso no inconsciente) deparei-me em minha biblioteca pessoal com um já lido antigo livro de Paul Auster, “O Inventor da Solidão” (ed. Best-Seller/1997).
Paul Auster é um escritor americano vivo e roteirista de cinema bissexto. Autor de vários livros, alguns deles, inclusive, sucessos editoriais, tais como "Trilogia de Nova York".
“O Inventor da Solidão” não é um livro dos mais famosos do escritor. Livro pequeno, não o transforma por isso em uma obra menor. Trata-se de um livro que recorda suas lembranças, ao mesmo tempo em que mescla seus vastos conhecimentos sobre literatura, psicanálise e filosofia. O cerne do texto é a questão da paternidade.
Após a morte do pai o autor, iniciando seu longo e elaborativo processo de luto, vai mosaicamente reconstruindo a imagem daquele que contribuiu para lhe dar a vida e que a vida agora o tira dele. A partir deste pai morto, não mais existente, Auster vai se dando conta do um pai desconhecido até então. Através dos objetos que um dia pertenceram a ele temos o começo do desnudar de um pai. Não é à toa, portanto, que o primeiro capítulo tome o sugestivo título “Retrato de um homem invisível”.
Pode alguém conviver tanto tempo com outro e dele quase nada conhecer? Parece que Paul Auster nos responde positivamente a tal indagação. E não estamos aqui a falar dos segredos íntimos de uma pessoa, mas sim de sua própria solidão, como assim o faz Auster quando descreve o célebre quadro de Van Gogh “O Quarto”: “Observe ali. Observe com cuidado. A cama bloqueia uma porta, a cadeira bloqueia a outra porta, a janela está fechada: não se pode entrar e uma vez lá dentro, não se pode sair... O homem nessa pintura ficou o tempo demais sozinho, debateu-se demais no abismo da solidão. O mundo termina na porta bloqueada. Pois o quarto não é a representação da solidão, é a própria solidão”. Arguta sensibilidade de um observador-escritor profundo.
Qual o lugar da perda de um pai na vida de um filho? Inicialmente, provavelmente, será a sensação de um vazio; depois, estranhamente, haverá de vir dúvidas: “será que o amei mesmo?’ ‘a quem amei?’ ‘ele me amou?” “a quem ele me amou?”. Talvez mais do que a inquietação da ausência física haja a inquietação da ausência das respostas.
Os objetos e as fotografias do morto são agora o terreno onde se possibilita a construção de um novo encontro. Os óculos com que antes ele via a vida repousa inerte olhando o filho, assim como um fio de cabelo na escova é o resto de uma seiva outrora nutrida de anseios e frustrações.
Quem era esse pai que se escondia por detrás de suas inúmeras máscaras de convencionalismo e obrigações, e que sempre lhe escapou fugidio pelos meandros miúdos do cotidiano? A imagem edificada pelos anos de evitação era assim como que um retrato incompleto de uma pessoa, lembranças de um não-encontro: um pai lacunar.
O pai de Auster ficara órfão ainda na infância e este vazio que carregara trouxera-lhe um retorno no conhecer do filho. Um pai e um filho. Duas ausências. Dois estranhos. Um órfão de fato e o outro psíquico. Um pai cujo amor de seu pai lhe foi tirado aos sete anos e que assim só soube amar de maneira interrompida. Um filho cujo destino foi ser amado por um pai que só sabia amar um amor infantil. O filho cresceu. O pai não.
Uma mesma raiz e duas solidões. Dois continentes separados por um imenso oceano. Uma única distância vivida na proximidade dos corpos. Ambos os quartos escuros, fechados, trancados, que não se sabem apagados. A perplexidade que Auster nos dá no refazer de seu pai através de cacos e retalhos é mais que uma leitura poética, é uma comovente história de uma história invisível e que somente após a perda se recupera com a força de uma história feita a dois.
Em seu mergulho na memória a partir da morte do pai Auster abre seu baú de lembranças com a singela obviedade da existência: "Num dia há vida... E então, subitamente, acontece a morte'. No cascavilhar dos escombros deixados pelo pai o autor/personagem expõe uma dais mais belas páginas da literatura contemporânea. Como afirma o autor: “não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar os objetos de um morto. As coisas são inertes: Têm significado apenas em função da vida que as utiliza. Quando essa vida acaba, as coisas se transformam, mesmo que permaneçam as mesmas”.
O psiquismo de um morto que em vida era como o enigma de uma esfinge a desafiar o filho constantemente "Decifra-me ou te devoro". A mente de um falecido na continuidade do filho - herdeiro e guardião de um baú de memórias e ausências - revela-se nua e inteira. Auster nos oferece essa viagem aos recônditos de um pai, quase como um intruso ou um ladrão, como ele mesmo confessa, a saquear os locais secretos da alma de um homem.
Quisera que os pais soubessem disso antes que o saber não lhes tivesse mais nenhuma valia. Conhecer-se por quem não é, é perder-se - diz o poeta. Haveria assim a chance em vida do compartilhamento e do encontro: do pai que se faz conhecer e conhece o filho, e um filho que conhecido se conhece ainda mais.