O HOMEM DA COBRA
Texto de Samuel de Leonardo extraído do livro: “Tute – Brincadeiras de papel”
Acredito que em algum momento da vida você deve ter ouvido a frase: “fala mais que o homem da cobra”. Se ouviu teve a curiosidade de ao menos uma vez em saber do que se tratava, caso ainda não tenha escutado, deve estar ávido para saber que assunto é este. Pois bem, eu sempre ouvira falar sobre o tal homem, e numa ocasião tive a curiosidade desvendada ao conhecer o famoso “homem da cobra” e por que tanto falavam dele, bem como a fama desse tal homem que falava tanto.
No início da década de 1970, ainda garoto, eu trabalhava como office boy na IAP Fertilizantes, que importava insumos para a produção de seus produtos. Periodicamente eu era incumbido de obter a chancela — o carimbo da autorização — das guias de exportação no setor denominado de CACEX, no Banco do Brasil, localizado na Rua Libero Badaró, no centro da cidade de São Paulo.
Vez por outra, cumprida a tarefa, sobrava uma oportunidade ao menino Tute para fazer uma horazinha e xeretar as atividades folclóricas e exóticas que a grande metrópole oferecia — gratuitamente — aos seus transeuntes, tais como o sujeito que engolia espada, o índio que virava peixe, a mulher descalça caminhando sobre cacos de vidros, o faquir deitado sobre a cama de pregos, o locutor gago narrando futebol, o Tarzan brasileiro que rasgava com as mãos as robustas listas telefônicas da cidade, o músico que tocava sete instrumentos ao mesmo tempo e outras curiosidades mais voltadas às atividades circenses.
Essas atrações se espalhavam pelos logradouros da movimentada urbe paulistana e, para assisti-las, traçávamos a caminhada seguindo pela Praça do Patriarca, Ruas Direita, São Bento, XV de Novembro, até chegar à Praça da Sé, onde encontrávamos em meio aos espaços disputados com os pregadores do evangelho, o personagem em questão. Circundado por curiosos anônimos lá estava ele trajando um terno surrado, portando uma vasta maleta onde dizia haver uma cobra, uma cobra de proporções imensas, capaz de engolir uma pessoa por inteiro, enquanto incansavelmente tagarelava exibindo pequenos frascos envoltos a um papel celofane de tom amarelado — o elixir milagroso — que tinha em sua fórmula um mirabolante remédio que a tudo curava. Entre uma fala e outra anunciava que a cobra iria sair, aguçando a curiosidade da plateia. Mais uma fala: “Senhoras, senhoritas, cavalheiros! — todos os que vivem nesta cidade — exibindo o produto — este é o elixir que cura espinhela caída, diarreia, prisão de ventre, tosse comprida e bucho virado. É o melhor remédio para a cura de todos os males, produzido com as plantas medicinais da Amazônia e jamais igualado. Quem tomou está curado.” Uma pausa e o anúncio enfático que de dentro da mala sairá uma cobra, a maior cobra do Brasil.
Sem maiores delongas, ele volta à fala: “Senhoras, senhoritas, cavalheiros! — estudantes, professores – todos os que vivem nesta cidade — exibindo o produto — este é o elixir que cura artrite, reumatismo e hemorroidas. É o melhor remédio para cura de todos os males, produzido com as plantas medicinais da Amazônia e jamais igualado. Quem tomou está curado”. Uma pausa e o anúncio que de dentro da mala vai sair uma cobra, a maior cobra do Brasil.
Neste momento, enquanto a plateia aguarda distraidamente a aparição da cobra, um sujeito alto de cabelos claros encaracolados demostrando euforia, adquire sem pestanejar cinco frascos, paga em dinheiro, várias cédulas de cruzeiros, e se retira. Observo que o sujeito entra num bar próximo e fica parado à porta olhando para a movimentação da praça. Um rapaz pede dois frascos, outra pessoa, mais um, e assim, no embalo de outros entusiastas, o produto é vendido em larga escala.
Sem esmorecer, o indivíduo volta à carga: “Senhoras, senhoritas, cavalheiros! — estudantes, professores — madames — todos os que vivem nesta cidade — exibindo o produto — este é o elixir que cura gonorreia, corrimento, atraso de regras, falta de vontade de brincar e enxaquecas. É o melhor remédio para cura de todos os males, produzido com as plantas medicinais da Amazônia e jamais igualado. Quem tomou está curado.” Uma pausa e o anúncio que de dentro da mala vai sair uma cobra, a maior cobra do Brasil. Dirige-se à mala e puxa um pouco o zíper que deixa uma pequena abertura onde pode ser visto parte da serpente.
Percebo que já estava ali há quase duas horas assistindo ao espetáculo e nada de ver a danada da cobra. Pelo passar das horas, retiro-me. Após dois dias desde a última ida ao centro, e uma vez realizadas as tarefas, sigo para a Praça da Sé para observar “o homem da cobra”. Desta vez um pouco mais tarde, quero ver se o homem vai soltar a cobra de dentro da maleta. Chego a tempo de ver o imenso animal saindo quase que por completo pela abertura, é perceptível tratar-se de uma jiboia, todos perplexos distraidamente admiram a grandeza do bicho com aproximadamente 3 metros de comprimento e dorso amarelo, com manchas ovais avermelhadas; e imagino o sofrimento do animal preso dentro da maleta com todo o calor que fazia naquele horário.
Neste momento, a cena do dia anterior, a qual assisti, se repete. Enquanto os curiosos se distraem atônitos com a visão do grandioso bicho, o sujeito alto de cabelos claros encaracolados, demostrando euforia, adquire de imediato cinco frascos, paga em dinheiro, várias notas de cruzeiros, e se retira, enquanto outras pessoas seguem o entusiasmo do primeiro comprador. Observo que aquele mesmo cidadão entra no mesmo bar próximo à aglomeração e fica parado à porta olhando de espreita a movimentação da praça, enquanto o homem da cobra fatura com o poderoso elixir.