A Judicialização da Política e o Abalo da Democracia Brasileira
Após os recentes acontecimentos dentro do sistema judiciário brasileiro só existem duas afirmações plausíveis sobre a democracia no país: já vivemos um estado de exceção ou o lawfare utilizado por nossos juristas nos aproxima cada vez mais de uma “ditadura branda” - orquestrada pelos togados em conluio com uma poderosa elite que também manipula os outros dois poderes.
A ideia ocidental de três poderes independentes e seguindo apenas os preceitos constitucionais é cada vez mais abalada por um ativismo judicial bastante intervencionista nas esferas políticas. A invasão dos tribunais sobre a ordem política é grave porque se perde um controle heterogêneo do poder. Pois quem elabora as leis é o mesmo que aplica, se torna um “feudo autossuficiente”, um verdadeiro atentado ao princípio da separação dos poderes porque retira da esfera política a sua possibilidade de ação.
A crise institucional e a não representatividade popular nas casas legislativas e executivas geraram um clamor (principalmente entre a classe média) para que os Tribunais resolvessem os casos envolvendo corrupção por parte dos agentes públicos. No entanto, o que se observa é a manipulação do sistema com aparência de legalidade para fins político-partidários. Para pensar essa parcialidade jurídica basta observar como os magistrados tratam casos de corrupção entre agremiações partidárias distintas.
Ao mesmo tempo em que se condena o ex-presidente Lula (num processo bastante criticável por suas ações e diante da dúvida sobre as provas materiais que o incrimine), o atual presidente Temer não é julgado pelas casas judiciárias - ignorando provas concretas e amplamente divulgadas para a opinião pública em que o mesmo é gravado em ligações telefônicas que direcionam para ações corruptíveis. O mesmo silencio judicial se repete em relação ao parlamentar Aécio Neves, o qual apresenta vários indícios de ações irregulares e com um amplo relato de provas que o condenariam facilmente.
Se a comparação for feita entre caciques políticos e populares, o elitismo e partidarização da política ficam mais aviltantes. Em 2017, um oficial de justiça vai entregar uma intimação a Renan Calheiros, o presidente do Senado. O político alagoano deixa o representante da lei esperando horas e não recebe a intimação. No mesmo período um outro representante judiciário vai à casa de 700 famílias pobres em São Paulo e acompanhado pela tropa de choque da PM - acontecimento em que pessoas humildes são humilhadas e expulsas de seus lares.
O funcionamento da justiça brasileira mostra seu viés partidário/arbitrário em um novo capítulo. Enquanto foram feitas tentativas de condenar sem provas materiais políticos investigados pela operação jurídica mais famosa no país, Claudia Cruz, esposa do já condenado Eduardo Cunha é inocentada (ignorando os cheques nominais assinadas pela própria, o que constata o uso ilegal de dinheiro público). Isso aponta para um Poder que dependendo da posição política tenta punir a todo custo (infringindo as próprias regras que deve zelar). Enquanto que no outro lado tem um tratamento no mínimo suspeito e diferenciado - como é o caso do arquivamento de denúncias contra o político paulistano José Serra.
Existem provas materiais coletadas durante o indiciamento de Cunha em que sua esposa manteve movimentação bancária no exterior e usufruiu do dinheiro público desviado pelo esposo. Apesar desses dados, a condenação dela não foi levada adiante. Além disso, no mesmo dia em que a esposa do ex-parlamentar foi inocentada, uma mulher, moradora da periferia teve sua liberdade negada por furtar ovos de pascoa em um supermercado. O Estado em suas três facetas é um balcão de negócios da burguesia, partidarizado, com pesos e medidas distintas quando combate o crime entre as diversas classes sociais.
Em outras ocasiões a Lava Jato não conseguiu encontrar José Sarney e Claudia Cruz para intimá-los a depor. Enquanto isso, reitores de universidades foram processados e expostos publicamente por terem se manifestado contra o impeachment de Dilma Roussef. Esses acontecimentos somam-se a um longo silêncio do nosso judiciário numa série de outros inquéritos sem a devida investigação. Alguns desses casos inclusive prescreveram tamanha a inercia dos “homens da capa preta” em relação aos mesmos. Isso se aplica ao caso do helicóptero carregado de cocaína, o escândalo do metrô paulista por parte de governos tucanos, o desvio de verba pública nas merendas das escolas paulistas, a agressão do governo do Paraná a professores e o aeroporto público construído em terreno particular numa cidade mineira.
As decisões técnicas, pautadas no conhecimento jurídico são deixadas de lado para operacionalizar ações dubitáveis quanto a sua capacidade de comprovação no tocante a materialidade nos crimes investigados. Os juízes passam por cima das leis, extrapolam-nas como senhores de um poder absoluto e incontestável, os verdadeiros donos do poder. E dificilmente são penalizados. Quando são afastados de seus cargos continuam a receber elevadas remunerações (muito acima do teto acordado pela lei), sem contar o recebimento de auxílio moradia (mesmo tendo seus próprios imóveis). Os magistrados comportam-se como políticos partidários e ainda usufruem indevidamente de verbas públicas pagas revoltosamente pelos contribuintes.
É uma gama de atitudes rumo à intensificação da judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins partidários. O abuso de direito com o intuito de prejudicar a reputação de adversários políticos. A promoção de ações judiciais ou arquivamento das mesmas para desacreditar ou blindar figuras políticas. A operação Lava Jata não é um combate à corrupção - se fosse todos os políticos e partidos envolvidos em corrupção seriam julgados da mesma forma. A justiça atende a interesses de uma elite que quer se perpetuar no poder. Como existe o risco de um líder popular ser eleito através do processo eleitoral e interferir em seus interesses privatistas, manobras institucionais são feitas para impedir que isso seja concretizado. Nossa história se repete, assim foi com Goulart, JK e Vargas - a elite que não aceitou perder seus privilégios foi capaz de sabotar os preceitos democráticos, os interesses comuns da nação em nome da prevalência de seus interesses econômicos.
A bandeira do combate à corrupção é uma fachada moralista para impor manobras antidemocráticas que concretizem objetivos que não seriam alcançados pela via eleitoral. Vem sendo realizado um projeto político conduzido minuciosamente pela elite econômica com a finalidade de assegurar para si a condução ideológica da sociedade e barrar direitos que possam ser oferecidos as camadas populares (o que iria diminuir os seus lucros). Isso é muito claro quando as condições laborais foram precarizadas com a reforma trabalhista, instante em que direitos foram retirados da população - desobedecendo a Constituição de 1988, mas com aval do Poder Judiciário. O mesmo aconteceu com a diminuição do salário mínimo e o corte de gastos nos serviços públicos. O ódio institucionalizado às classes subalternas é a mais concreta de todas as nossas singularidades sociais. E isso já contaminou a pretensa neutralidade dos nossos juízes.
02.02.2018