Calçadas

Calçadas

Rosália Cristina

Para rodas de calçadas, não há idade certa.

Uma roda de crianças senta na calçada no sol da dez da manhã, esperando as mães chamar para o almoço. Entre um tac e outro das bolas de gudes, a calçada se alimenta daquelas vozes altas e alegres. A poeira nas pernas, o cheiro do suor, a pele queimada à mostra no vão da camisa surrada pela idade. Para eles, a calçada é colo de cimento ou de barro batido, que solidifica suas amizades tão juvenis.

Uma roda de idosos senta na calçada. Banquinhos de madeira com pintura envelhecida pelos anos e uma mesa redonda feita de um velho carretel que abrigava os fios da rede elétrica que foram instalados anos atrás, na rua. O barulho do dominó ecoava até a porta da igreja, cujo padre aparecia com os braços cruzados a olhar de longe aqueles senhores. Talvez quisesse participar da rodada! Mas os vícios instalados - cigarro de fumo prensado, cachacinha de garrafa, palito entre os dentes e o dinheiro miúdo na brincadeira da jogatina - faziam o padre só olhar de longe a pensar o que dizer na próxima missa. O riso e gritos dos idosos, no comecinho daquela tarde, pareciam trazidos pelo túnel do tempo donde aqueles meninos igualmente sorriam e gritavam. Para eles, a calçada era cabelo de moça bonita do qual eles passariam a tarde a acarinhar com as mãos.

Depois dos cheiros de café coados, no finalzinho da tarde, uma roda de mulheres sentava na calçada. Um crochê a terminar, a novidade da semana para partilhar, uma nova receita de chá para acabar de vez com as dores abdominais. Pernas cruzadas, saias enroladas entre as pernas a cobrir-lhes “as vergonhas”, um menino ainda de colo passando de mão em mão. Às vezes, nada de gritos, às vezes nada de sorrisos. Mas a tarde, feminina que é, trazia suas caixinhas de surpresas e os risos despertavam a noite. A mistura de várias vozes falando ao mesmo tempo estimulava os grilos a começarem suas cantorias. Para elas, a calçada era alimento para a alma.

No findar da primeira parte da noite, a calçada se cedia para as avós e netos ainda despertos. Vozes mais baixas. Sorrisos às escondidas. Uma criança a se aconchegar no colo da avó, com uma chupeta e um pano branco a esquentar o pescoço. A cena fazia lembrar histórias passadas que eram contadas para elas próprias e para a criança que fazia de conta não ouvir. O silêncio na rua trazia histórias de assombração, o casal de namorados numa porta mais adiante trazia histórias de contos de fadas, um cachorro magro de olhar cabisbaixo passando pelo meio da rua lhes trazia história de fábulas. Para elas, a calçada era uma rede bordada a balançar seus sonhos.

Na noite avançada, com seu silêncio iluminado pela lua, a calçada se dava para os bichos da vizinhança: dois gatos que, tranquilos, comem os pequenos pedaços de carne e ossos deixados por alguém para eles todas as noites; o cachorro magro que passara logo cedo cheira a calçada e urina na esquina da mesma parede toda noite. As formigas passam e comem os restinhos de confeitos agarrados nas embalagens, deixadas pelos meninos naquela manhã. Para eles, a calçada era vida que seguia. Vida que aguardava mais um por do sol.

Rosália Cristina
Enviado por Rosália Cristina em 15/03/2022
Código do texto: T7473225
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