O HOJE E O AMANHÃ

Muitas vezes, por várias vezes, utilizei-me da expressão latina "Carpe Diem", comumente conhecido em português como aproveite o dia. Literalmente carpe significa desfiar, colher, extrair, gozar. Vem de carpe o verbo carpir (extrair, capinar). Carpe Diem é um termo em latim que nós legamos do poeta satírico romano Horácio de sua ode nº 11 (ode a Leucónoe) do livro 1 das Odes. Lá encontramos a seguinte sentença: "carpe diem quam minimum credula postero", ou seja, "colhe o hoje e preocupa-te o menos possível com o amanhã". Embora esteja claro o que quis dizer o poeta, discordarei um pouco dessa relação diametralmente oposto entre o hoje o amanhã, isto é, de um hoje hipervalorizado e um amanhã hiper desprestigiado.

Não confiar no futuro e retirar do presente todas suas energias dá-nos a falsa primeira impressão de que a vida não pode ser economizada para o amanhã, como se no amanhã todos os frutos hoje maduros estivessem podres. Não é bem assim. Excesso de futuro compromete o viver no presente, assim como manter-se preso eternamente ao passado gera depressão. É necessário saber harmonizar a convivência existencial e factual da temporalidade tripartida em passado, presente e futuro. Somos ao mesmo tempo os três tempos. Atenho-me ao dito pelo escritor e dramaturgo Oscar Wilde quando disse que "cada homem é, em cada instante, tudo o que foi e tudo o que será". Sim, só podemos perceber o tempo, como já afirmava Santo Agostinho, quando ele transcorre, isto é, no instante presente. Dentro da visão agostiniana o futuro é onde os fatos que hoje vivenciamos serão passados. Eu diria até mais: é no presente que plantamos muito das raízes arbóreas dos frutos que amanhã colheremos. Vivemos, assim, em um dilema entre usufruir o instante ou o zelar pelo amanhã.

Venhamos e convenhamos, se carpe diem é aproveitar o dia e se depois desse dia houver o dia seguinte e depois deste o vindouro e assim sucessivamente por um bom tempo indefinido em seu inevitável término, o carpe diem de hoje é semente para o carpe diem subsequente. É pertinente não deixar para depois (futuro) o que podemos fazer agora (presente), mas também devemos cuidar para dar condições de fazer amanhã o que não podemos fazer hoje. Exemplo: se uma pessoa ganha R$ 5.000,00 para viver a vida e gasta todo o seu rendimento mensal com boates, jantares e roupas de grife poderá não realizar seu sonho de viajar pelo mundo como mochileiro. Para realizar tal desejo mediato é preciso abrir mão de alguns prazeres imediatos. Não é necessário abdicar totalmente do presente, porém encontrar um meio-termo entre os prazeres imediatos (curto prazo) e mediatos (longo prazo), tipo: frequentar menos as boates, espaçar os jantares e não comprar tantas roupas mensalmente, porém bimensalmente ou até trimestralmente, afinal por que comprar um jeans diesel todo mês? Assim a pessoa gastará algo como R$ 3.500,00 ao mês e guardará R$ 1.500,00 todo mês. De grão em grão a galinha enche o papo. Daqui algum tempo haverá reserva financeira suficiente para bancar a aventura mochileira, isso sem renunciar a boates, jantares e roupas.

Hedonismo x eudaimonismo. No hedonismo (do grego arcaico "prazer") o prazer é o bem supremo da vida humana, o caminho para se atingir a felicidade. No eudaimonismo (eu daímõn em grego significa "bom espírito") a felicidade é um objetivo, uma finalidade. Escreveu Aristóteles: "a felicidade é um princípio; é para alcançá-la que realizamos todos os outros atos; ela é exatamente o gênio de nossas motivações". O hedonismo prega o valor imediato enquanto o eudaimonismo propõe perseguir a felicidade no amanhã a partir dos atos que fazemos hoje. No hedonismo busca-se ceder ao imperativo dos desejos. Na eudaimonia busca-se escolher os desejos que deverão ser satisfeitos.

Sabemos, a contragosto, da brevidade da vida. Cabe-nos, em parte, melhor escolher entre mais vida em nossos dias ou mais dias em nossas vidas. Ainda creio que a mais sábia escolha é o caminho do meio. É uma questão existencial de conciliar quantidade com qualidade. Prefiro uma maior qualidade com maior quantidade do que muita qualidade com pouca quantidade. Uma qualidade bem dosada dura mais tempo

“Uns, com os olhos postos no passado,

Veem o que não veem: outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, veem

O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele”

(Ricardo Reis/Fernando Pessoa)

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 15/03/2022
Reeditado em 15/03/2022
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