Crônica Agridoce
Ah... o interagir da atualidade. Onde sorrisos são acionados por botões de “like” e ansiedades geradas pela falta de notificações. Um olhar ressabiado na tela do celular esperando pelos números que ora vem ora não vem.
O que alimenta, ou tenta alimentar um espaço vazio, que não para de crescer por mais que se criem redes. Estas em que se tenta tecer firmes fios, que balançam e arrebentam ao menor sinal de fragilidade.
Que tentativa seria essa de suprir algo que falta, e de fato trocar por um pouco de atenção, de estranhos, tão velhos conhecidos que cruzam a tela em um deslizar de dedos.
Aquece passageiramente e quando vê, se foi. Deliciosamente uma atração, seja pela foto, perfil, descrição. E momentaneamente parece que permanece. Momentaneamente ilude que se instalou, mas com a mesma velocidade que chega, se retira. E o ciclo recomeça. Quase como mão trêmulas a buscar o cigarro, ou a bebida deixada de lado. Uma abstinência.
Procuram-se afetos, discretos, diretos ou não. Ah... tentativa em vão de preencher esse vórtice. Pele, desejo, momento que se vai.
Vazio. O esvaziamento do cotidiano. Em conversas desconexas travestidas de brincadeiras. O riso nervoso que tenta disfarçar muralha criada para evitar que reais sentimentos sejam enfrentados e vividos.
Fica o afago com prazo de validade, no peito uma sensação rápida de agrado. Mas passa. Que afeto tão instável que esmaece como bruma dissipada ao vento?
A busca pelo que fica, se instala em algum momento. A procura pelo que, de verdade permanece quando a sensação da conquista se vai. Quando a impressão do flerte desaparece. Quando pele suada se descola após o fim do encontro.
O que permanece? O que verdadeiramente aquece o coração, faz brilhar a alma. Não precisa ser o que criticam tanto, como o romance romântico romantizado. Se bem que umas boas doses de carinho, pode até ser dos mais piegas ganhem um valor muito maior do que o elogio da “pegação”. Sim aquele que infla um pouco o ego, até causa uma certa atração. Mas o que de fato resta depois?
Um querer de algo mais, de sorrisos que se cruzam apenas por pensamentos afins. Das gargalhadas gostosas inebriantes por assuntos bobos, peculiares. Do afago sincero que pode surgir de uma simples mensagem no meio do dia. Ah... essa sim. Notificação que faz o coração dar um saltinho.
Muito mais que 300 mensagens, talvez essa única te faça sorrir com os olhos.
Alguns dirão: “eu gosto da curtição, sou livre dessa forma, a quantidade me satisfaz...”
Mas há aqueles, sim, há aqueles que prezam por algo que infla, não o ego, mas a alma. Que busca quem desnuda os mais belos instantes, quem sabe perceber a singeleza das entrelinhas. Que se afina com maestria para compor melodias lindas.
Há os que são plenos em si próprios, e desejam partilhar dessa plenitude com quem também se acha pleno. E que muitas vezes podem dividir tanto, risos, rotina, o passar dos anos, e até mesmo o silêncio, sim o silêncio em talvez apenas momentos de solidão acompanhada.
Há os que desejam muito mais do que ser panfletos soltos ao vento que se acumulam sem muita importância. Há os que desejam ser livros. Sim, aqueles que são cheirados e inebriam, que se tornam agradáveis ao toque dos dedos ao virar das páginas. Os livros que são devorados aos poucos, desvendados e que quando não estão sendo lidos naquele momento, são lembrados ao longo do dia, curiosidade de dar continuidade na história. Sim, como os livros favoritos que são lidos e relidos inúmeras vezes e sempre se descobre algo novo a se apreciar, ou se renova ainda mais os motivos pelos quais fizeram esse livro ganhar destaque em sua biblioteca, te acompanhando não mais somente na prateleira, mas internamente, memorizado em cada palavra que ao lembrar te faz sorrir.
Vivamos, sintamos, vibremos. Cada um dentro de suas escolhas e do que alimenta o que se quer. Mas, como eu disse acima, há os que podem ficar felizes e se contentar com o passageiro, quase um apressado ser que troca de trem a cada momento, ou se perde na próxima estação em busca de um novo destino. Mas há os que percebem o quanto o tempo passa rápido, e no fim das contas o branquear dos cabelos, talvez uma dor no corpo aqui, outra acolá, podem ser algumas das coisas mais íntimas a se partilhar. Como livros e café.
Talvez um sabor agridoce que mistura tantos fragmentos de cumplicidade que se unem e se tornam plenitude, justamente pela simplicidade de algo que fica, que após perceber que outras camadas iniciais eram meras e pequenas ilusões externas, se percebem pequenas pérolas que merecem ser cultivadas, pois seu valor vai muito além do brilho do ouro de tolo.
A verdadeira alquimia se dá ao misturar os elementos corretos. E daí vem a transmutação. Basta olhar para dentro e se perguntar o que se quer de fato, entre a vastidão do apenas caminhar sem rumo, com tantas paradas e nenhum prumo, ou o acalentar do furacão.
Resta saber o que se quer...
...trocar por “diversão”, moeda tão rara como o que chamam de amor? O suprir do momento solitário...e ficar com o troco de centavos? Qual real tesouro a se guardar?
Isso é com cada um... mas há os que desejam um pouco mais do que ser desejado, apreciado, devorado e digerido, sem de fato ter ganhado significado.
Adriana A. Bruno
15/03/2022