Quem vive no interior sabe exatamente o valor do tempo. O sol é um relógio perfeito para os cabelinhos de algodão que nem precisam usar gravetos para sombrear as horas.

O filme que foi lançado no domingo, na capital que fica a 70 km, leva meses pra chegar ao cinema local. Quando criança vivia essa espera alucinante. O único cinema da cidade, bem no centro urbano, cuja sede era bordada pelo barroco, por si só era um evento.

Lá se apresentavam os alunos de escolas de dança, os formandos recebiam seus canudos, as peças de teatro faziam brilhar os olhos, as homenagens da Comenda Antônio Franciso Lisboa coroavam os inumeráveis do bem e tantos outros espetáculos ocorriam.

Lembro-me de aguardar ansiosa, bem do lado de fora, a porta se abrir. Exatos dois minutos do início da sessão. Era uma festa a correria pra tomar as cadeiras de centro, as melhores para não perder nenhum minuto do show.

Do lado de fora do cinema havia uma árvore. Copa gigante e flores que durante o inverno revelavam um tapete laranja que explodia ao ser pisado: as sensações eram únicas. Não foram poucas as vezes que parávamos o carro e descíamos apenas para ouvir os estalos da espécie de nome frutal.

Mas como nem tudo são rosas, o cinema foi reformado. Aliás, a reforma está em andamento. Um projeto arquitetônico raro, cuja assinatura em destaque, revela a grandiosidade da construção. Mas nem tudo cabe numa plotagem e a árvore que sombreou nossa infância foi abruptamente cortada. Foi um choque passar em frente ao portão, que agora desliza, e ver aquele buraco profundo, mesmo que a estética quadriculada do solo esteja perfeita. 

A ausência da árvore trouxe uma constação dolorosa: não caber nos padrões atuais é tão escravizante que pode levar a morte. O projeto arquitetônico priorizou a criação de espaços livres e limpos, de circulação fácil, que permitam maior deslocamento dos que frenquentam a área. Em contraponto, tirou a sombra fresca e a moldura perfeita de histórias que foram contadas com pipoca nas mãos, algodão doce e pururucas. Tudo isso, graças ao carrinho de doces da Tia Ju e a Kombi do Mário da Pururuca que também não cabem no novo design do prédio. Na vida também somos assim, essa carga de pertencer a um grupo, de ter padrões mínimos exigidos pelo mercado, de possuir rótulos atraentes, seleciona as pessoas de modo impiedoso.

A modernidade vai tomando conta da cidade e o patrimônio imaterial vai se perdendo aos poucos. Parece que não pertencer ao novo dita uma regra: data de validade no tempo. Um crime inafiancável apagar memórias.

E diante da emoção que por hora sou carregada, sinto rolar uma lágrima que ao escorrer na face vai perfazendo o caminho da ilusão que carrego, embora a árvore seja banida, as lembranças jamais serão. Até que Janaína, uma amiga da época, com quem estava no momento, chama pra realidade:

- A dinâmica da vida é certeira e cruel ou você se enquadra na nova ordem ou a nova ordem te engole. O minimalismo e a estética limpa é bem mais bonito. Também, iam ficar pra sempre limpando essa sujeira que essa árvore criava? Já era hora.

Ainda bem que sou feita de memórias...

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 14/03/2022
Reeditado em 15/03/2022
Código do texto: T7472429
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