SOMOS TODOS HAMLET

O mais dramático e trágico dos personagens shakespearianos talvez seja Hamlet. Embora mesmo quem jamais assistiu à peça teatral ou sequer ouviu falar dela conhece a atormentada e angustiosa expressão "ser ou não ser eis a questão". A frase faz parte de um monólogo de Hamlet e é seguida da seguinte inquietação: "sofrer na alma as flechas da fortuna ultrajante ou pegar em armas contra um mar de dores pondo-lhes um fim?". Não obstante a história seja escrita em torno do final dos anos 1500 e começo dos anos 1600 a referida fala do personagem é atemporal. O conflito interno e os dilemas morais é, por assim dizer, parte da própria natureza humana. "Ser ou não ser eis a questão".

Este parece ser o mais profundo sentido da vida humana: ser ou não ser. A indagação hamletiana é feita pelo mesmo frente a um crânio de uma pessoa que ele conhecera em vida. Se o que Hamlet tem em mãos é uma sobra óssea de um esqueleto, antes ela era coberta de carne e dentro havia uma vida cheia de sonhos, ilusões, esperanças, alegrias e tristezas. Ser ou não ser é a perplexidade hesitante da vida humana frente à morte. Os demais seres viventes vivem existindo, somente o homem vive existencialmente.

Ser quem se é. Mas quem é que somos? Pensamos ser tanta coisa, já dizia Fernando Pessoa. Não podemos ser sempre o que gostaríamos de ser, porém o que podemos ser e ainda não somos. Desejar não é ser. O desejo de ser o quem não se é nos gera sofrimento. A principal raiz de um existir sofrente reside na não-aceitação de quem se é. O sublime foi feito para os santos e os heróis. Inúmeros são aqueles que passam a vida querendo ser mais do que carne e nervos. Na inutilidade de nossos ideais quiméricos distanciamo-nos do verdadeiro ser que respira em latências traídas pelo narcisismo da alma. Queremos mais qualidades do que temos. Nossas algumas competências não nos bastam. A propriedade predicativa de cada um parece menos. Nossas magníficas majestades não aceitam viver sem cedros e coroas. O mundo é meu reino, embora dele sequer seja um súdito. "Entre mim e o em mim/e o quem eu me suponho/corre um rio sem fim", escreveu o poeta.

Quem é esse ser verdadeiro que nos habita e que dele tanto tememos, apenas por que sua autenticidade nem sempre condiz com o ideal que de nós fazemos? Quem não se aceita, com todas suas qualidades, virtudes, defeitos e limites, atrofia seu próprio desenvolvimento. Quem não se consente ser o que é busca na vida uma inautenticidade que não lhe legitima, uma máscara que lhe aprisiona sua real face. Somos o que somos e não o que idealizamos. Tornar-se algo, tornar-se alguém, é transformar o que ainda não se é, mas que pode vir a ser, em aquilo que já se é.

Se somos feitos de contrários e se somos diversos e adversos, que sejamos, então, inteiros. Ser não é uma questão, porém uma aceitação. Não ser é uma negação.

“Contradizer-me me dá segurança de que atingi a verdade possível” (Agostinho Silva)

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 14/03/2022
Reeditado em 14/03/2022
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