Da janela, à toa

É domingo, religiosamente dia de missa, para os que são de missa, o que não é meu caso, graças a Deus. Minha missa é, principalmente aos domingos, ficar aqui e assim, em pé e à toa, da janela 3x4 que me veste e me separa das segundas-feiras, quase imóvel, a catalogar as paisagens e acontecimentos miúdos. É assim, dialogando monologamente com paisagens e acontecimentos cotidianos, que mais me aproximo de Deus e de seus mistérios.

Daqui eu vejo está manhã de domingo passar, baixando muito lentamente as cortinas e iniciando suas apresentações. São apenas 10h, e de um domingo, o que é mais grave, mas já há criança na rua, misturada a sacolas de lixo que enfeiam os meios-fios, avidamente a procurar algo que não sei ao certo o que é, mas que facilmente presumo. E ela não está sozinha nessa busca: dispõe da companhia de dois farejadores vira-latas, que fazem a triagem dos resíduos.

De tempos em tempos, um dos farejadores dá uns latidinhos, interrompendo a concentração do garotinho e o alertando sobre a descoberta de algo comestível ou lúdico. Então o garotinho para os afazeres laborais, volta-se ao achado e fica por uns segundos numa expectativa alegre que só vendo. Mas aí ele descobre que o achado nada mais é do que uma garrafa PET, com a qual os farejadores botam-se a brincar. Toda a expectativa alegre do garotinho dissolve-se, mas, mesmo assim, este domingo não suspende a marcha fúnebre, e traz à boleia a figura desta triste senhora, de seus aproximados 20 anos, pés 36 bico fino, lábios cor de vinho, vestidinho preto, em conformidade com o mapa astral domingo S/A.

Carregada com duas bolsas plásticas transparentes, uma em cada mão, uma carranca de dar medo e uns passos longos da altura de Usain Bolt, ela passa por minha janela 3x4, em destino à esquina mais próxima, onde se some, sem deixar rastros nem sorriso.

Possivelmente essa senhora deve ter vindo do mercado e descoberto o preço da guerra, na pessoa jurídica das cenouras. Apesar de provavelmente que desconheça a cotação atual do dólar, o preço do barril de petróleo no mercado internacional, as terminologias usadas no mercado de commodities, e mesmo o que seja commodities, o que é plenamente aceitável, não ignora que o quilo da cenoura a R$15, 00 é um roubo. "Se fosse para remédio, ainda vá, mas para consumo... Um roubo!!!", talvez considere.

Daí a carranca, os passos longos e apressados, o vestidinho preto... Um reflexo da carestia da vida, que me faz lembrar a figura dominical de Zé Ribeiro, um ativista do comunismo comunitário, que recentemente, em razão do aumento estratosférico no preço do milho, foi forçado a abandonar sua estimada criação de galinhas e a criar tartarugas. Tem duas atualmente e as mantêm a custo módico, alimentando-as com mato e sobras de comidas. Pretende dobrar a produção até o fim do ano, para fins recreativos, apenas, que não intenta exportação.

Zé Ribeiro, em pessoa, que eu tenha visto, nunca passou em frente à minha janela 3x4, mas é como se ele sempre estivesse detrás dela, avistando o mundo e sua liturgia. Vejo, de minha janela 3x4, este domingo lenta e inflacionariamente passar, e é como se eu o visse sob a ótica do comunismo comunitário de Seu Zé Ribeiro.

De fato, camarada Zé Ribeiro, como me dissesse em um domingo desses: "A guerra, um dia, precisa acabar".

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 13/03/2022
Reeditado em 13/03/2022
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