No mesmo dia...
1. Patativa do Assaré e eu nascemos no mesmo dia e mês, 5 de março. Ele nasceu poeta (Nascuntur poetae) e eu cronista. Cronista? Sou mesmo um cronista? E aqui me lembro do que escreveu o saudoso jornalista Artur Xexéo: "Nunca me senti confortável no papel de cronista. Tenho medo de assumir que sou cronista e ser comparado com Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos". Xexéo que era o Xexéo, imagine eu, meu caro amigo.
2. Patativa e eu nascemos no interior do Ceará. Ele no mato, num lugarejo pé-de- serra, e eu em uma cidadezinha às margens do Rio Jaguaribe, o maior rio seco do Brasil. Somos, portanto, sertanejos da gema. Como tal, ele nutria um carinho todo especial pelas coisas e causos do surpreendente sertão. Descrevia o que sentia e o que via em primorosos versos. Desde que o conheci, através de suas rimas matutas, tento imitá-lo, cantando ou contando o sertão em crônicas soltas, modestíssimas.
3. Abrindo um dos seus belos livros, "Inspiração Nordestina", no seu prefácio, Patativa se apresenta assim: "... nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, que dista três léguas da cidade de Assaré". Na cidade de Assaré Patativa viveu a vida toda. Nunca mudou de residência; em Assaré, morreu no dia 8 de julho de 2002. Não estudou, não viajou; cego de um olho, e desse jeito, ele versejou, cantando o sertão do nosso Ceará, com uma simplicidade encantadora e verdadeira.
4. Ainda em "Inspiração Nordestina", diz ele, em um pequeno poema: "Leitô, caro amigo, te juro, não nego,/ Meu livro te entrego bastante acanhado,/ Por isso te aviso, me escute o que digo,/ Leitô, caro amigo, não leia enganado." E mais adiante, no mesmo poema: "Não vá percurar neste livro singelo/ Os cantos mais belos das liras vaidosas,/ Nem brio de estrela, nem moça encantada,/ Nem ninho de fada, nem chêro de rosa."
5. Patativa se chamava Antônio Gonçalves da Silva. Patativa? Por que? Porque, suponho eu, sua poesia tinha a sonoridade e a delicadeza do gorjeio desse pequenino pássaro. Você, meu caro leitor, já viu uma patativa? Não? Saiba que é um passarim bem pequenininho, frágil, mas de um canto sedutor. Conheço bem a patativa. Cheguei a criar, no meu jardim, em gaiolas doiradas, uma dezena delas. Comprava na Feira das Sete Portas, aqui em Salvador, na mão de um alagoano, que já morreu, seu João de Arapiraca, um passarinheiro de primeira.
6. Um dos meus poetas queridos, seus versos, reunidos em vários livros, estão na minha mesinha de cabeceira. Vez em quando, ou melhor, quando perco o sono, caminho devagarinho sobre as rimas gostosas de Patativa, até ser colhido pelo sono reparador. Repito: sou feliz e agradecido por ter nascido no mesmo dia do Patativa, este vate amado pelos cabeças-chatas. Só por eles? Não, também pelo povo brasileiro, amante da boa poesia.
7. Patativa nasceu no ano de 1909; este cronista num ano qualquer do século passado. Patativa morreu com 93 anos; e este cronista espera chegar pelo menos aos 90, não tão distante. Patativa morreu deixando poemas, milhares, que atravesserão incólumes os séculos, além dos que já atravessou; este cronista (cronista?), repetindo, seu admirador, deixará pequenas crônicas que o tempo se incumbirá de escondê-las, porque insignificantes...
Como Patativa cantou sua Serra:
Minha Serra
Quando o sol ao Nascente se levanta
Espalhando os seus raios sobre a terra,
Entre a mata gentil da minha serra,
Em cada galho um passarinho canta.
Que bela festa! que alegria tanta!
E que poesia o verde campo encerra!
O novilho gaiteia, a cabra berra,
Tudo saudando a natureza santa.
Ante o concerto desta festa infinda
Que o Deus dos pobres ao serrano brinda.
Acompanhada de suave aragem,
Beijando a choça do feliz caipira,
Sinto brotar da minha rude lira
O tosco verso do cantor selvagem.