Sobre cantos e flores

Houve um tempo que morei em uma cidade que não se encaixava em mim, ela não me abraçava. O único lugar que eu me encontrava era no interior do meu lar. Ali eu podia existir, seja ali ou em qualquer lugar. E era difícil eu não me adaptar. De todas cidades que morei, eu existi em todas elas, menos naquela. Eu já andei por tantos cantos, já me perdi e já me encontrei, me reinventei, mas ali eu só estava.

Eu fugia, voava como pássaro para me sentir completa, mas sem conseguir sair do lugar, ali eu ficava. E foi ao tentar lançar-me em um voo para fora daquela realidade, nada satisfatória, é que encontrei meu primeiro refúgio, o Ipê rosa. Que floriu sem que eu percebesse, porque eu sempre estava tentando ficar cada vez mais distante de tudo aquilo ali.

Quando o enxerguei ele já existia e suas flores cobriam o chão formando um tapete rosa que me lembrava algodão doce. Como alguém pode enxergar apenas uma sujeira na calçada? Eu via flores, música e sabor. O vento soprava nos seus cachos rosas e deles voavam alegria.

O refúgio para meus olhos e alma me despertava todas as manhas quando eu abria a janela de meu quarto. Ali meu mundo se abria, na esperança de que algo também florescesse em mim. E antes que minha alma sentisse o acalento definitivo, o Ipê rosa se despetalou, cedo demais, pelo menos para mim. Dele sobraram apenas o verde da esperança de um dia revê-lo.

Por meses nada lá fora despertava algo aqui dentro. Por meses o Ipê rosa foi para mim todas as cores da minha vida. O vazio voltou. O mundo externo me invadia com suas buzinas, barulhos de motos e carros. Até que um canto muito alto tornou-se frequente. Olhava pela janela a procura do pássaro, mas não o via. Minha casa era pequena e eu podia ouvi-lo também da área a céu aberto. Sempre de dia, nunca o ouvi a noite. E pássaros cantam à noite?

De tanto buscá-lo um dia o vi, e me surpreendi. Frágil e pequenino. Preto e branco. O tal pássaro pequeno me trouxe uma imensa alegria. E com apenas duas cores me trouxe todas mais. Duas cores, um corpo pequeno e um canto alto. Precisava saber seu nome. É aquela mania de dar nome às coisas, como se elas só existissem assim.

Passei a observar com os ouvidos o meu pássaro. Pensei que ele estivesse ali por mim. Cores do Ipê rosa eu já não tinha, que fosse o lindo canto do pássaro a trégua na espera de um dia mudar dali. O seu canto despertou-me ,novamente, para a vida.

Pesquisei seu nome, e o encontrei: Bigodinho! Este é o nome do meu pássaro. Descobri, que como eu, ele não é nativo. Mas ele parecia não se importar. Deixava sair seu canto todas manhãs de forma alegre e persistente. Um vencedor. Um incentivador.

Bigodinho me enviava recados todos os dias, até que eu consegui entender. Eu posso estar pequena, mas sou forte. Posso estar sem voz, mas sei lutar. Antes não conseguia vê-lo, mas o sentia em todos os cantos. De tanto buscar seu som libertador, eu o achei ou ele me achou. Mas um dia, ele também se foi.

Lara Spalla
Enviado por Lara Spalla em 12/03/2022
Reeditado em 19/06/2024
Código do texto: T7471098
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