Medo na Água
CAPÍTULO 1 – O DESCOBRIMENTO
A aproximadamente 521 anos atrás, quando o Brasil ainda era banhado em toda sua extensão por águas claras e puras, quando os animais tinham direito pleno sobre a terra e os nativos viviam em paz, no nordeste do país a tribo dos Caetés passavam por um problema que estava trazendo escassez de alimento ao povo.
Os idosos e as crianças da tribo já não gozavam de vitalidade a algum tempo, a falta de nutrientes vindas principalmente do peixe que era pescado nas águas da região estava comprometendo a saúde de todos. Os animais terrestres que eram um recurso de segunda alternativa, também andavam em falta.
O Pajé da tribo, líder que era ponte entre o povo e as divindades andava preocupado com o caminho que as coisas estavam tomando.
Ele já algum tempo sentia que uma mudança estava para acontecer, uma mudança que traria sofrimento para seu povo.
Seu filho, futuro sucessor, inconformado com tudo, solicitou uma conversa com seu pai, para entender o porque nos últimos meses ninguém mais se aproximava dos rios para pescar.
— Pai posso entrar? — perguntou Ubirajara.
— Um momento!
A feição do Pajé era de medo, e Ubirajara nunca tinha visto seu pai assim antes, preocupado com o desconhecido, um pouco desnorteado.
— Pai o que está acontecendo?
— Tempos difíceis estão se aproximando. — respondeu Pajé.
Ubirajara entrou na oca e foi logo se sentando próximo de um cesto com cascas de árvores aromáticas, que traziam uma certa calma ao ambiente. Mas não o suficiente para mudar o semblante do seu pai.
— O que te trás aqui meu filho? — perguntou Pajé um pouco surpreso com a visita do filho que sempre foi desinteressado acerca dos ofícios do pai.
— Queria saber por que o senhor proibiu a pesca na tribo pai?
Ubirajara não concordava com essa ordem do seu pai, o povo passando fome e ninguém fazendo nada.
— As águas não são mais seguras. — respondeu Pajé com voz trêmula.
— Para com isso pai! Só porque alguns pescadores da tribo sofreram ataques de algum animal na água não quer dizer que todos sofrerão.
— Não foi um animal comum meu filho, o protetor das águas não está feliz com alguma coisa, e estamos pagando. — respondeu Pajé.
— Para com isso pai, eu mesmo vou pescar hoje.
Nessa hora Pajé se irritou com a petulância de Ubirajara, lançou seu cocar no chão de forma que ele se desfez todo.
— Nem pense em desobedecer a uma ordem minha, mas que seu pai, sou Pajé dessa tribo, e todos estão de baixo da minha autoridade. — respondeu Pajé irritado com filho.
— Pai, preciso fazer alguma coisa, e nós não fizemos nada, porque temer retaliação dos deuses? — respondeu Ubirajara indignado que estivessem sendo punidos por erro de outros.
A verdade é que o povo Caeté respeitava muito as orientações do Pajé, e pensar que a ação de outras tribos que viviam na região estivesse atingindo diretamente seu povo não entrava na sua cabeça.
— Você pode sim fazer algo, me obedeça.
Após essa direta do Pajé, Ubirajara levantou-se fitando seu pai nos olhos e saiu bem insatisfeito com o rumo que a conversa havia tomado.
Não pensou duas vezes, partiu rumo ao rio local hoje conhecido como Rio São Francisco, pegou arco e flecha, remo, seu tangará de estimação e partiu para a canoa rumo ao descumprimento da ordem direta do Pajé.
As sensações de preocupação elevaram na oca do grande líder da tribo naquela tarde.
Ubirajara, mesmo fazendo-se de grande corajoso, no seu íntimo temia, pois já havia presenciado em outros momentos pessoas que desobedeceram a ordens diretas do seu pai sofrerem fortes consequências. Mas mesmo assim não desistiu de tentar.
Na margem do rio um silêncio incomum pairava naquela tarde, isso era bem estranho dado a riqueza de aves que existia junto aos mananciais.
Ubirajara estava irredutível, convicto de que poderia fazer algo pelo seu povo. Então vagarosamente sem estardalhaços na água empurro a canoa.
Assim que entrou e seus pés se desencontraram da terra seca a vida tornou a se manifestar nas margens do rio. Foi assustador para Ubirajara ver tudo aquilo, mas mesmo assim não desistiu.
Já distante da margem o suficiente para pescar o seu tangará de estimação começou a cantar fervorosamente, mas não era um canto comum, era um grito de agonia. Ubirajara se assustou a atitude o seu tangará, mas não dava pra sair do rio sem tentar algo.
Dentro do barco havia um balaio tecido com fibras de bambu, então Ubirajara lançou o balaio na água e foi remando rio acima.
Enquanto subia o rio a remo, o tangará de Ubirajara começou a voar em círculos sobre o barco cantando freneticamente.
— O que foi bicho? Se não quer ficar aqui comigo voe para casa. — disse Ubirajara irritado com a sua ave.
Próximo de onde Ubirajara estava, havia um remanso nas águas, algo extremamente grande começou a se mover sobre as profundezas daquele rio em direção a embarcação de Ubirajara. Esse era o motivo do sobrevoo barulhento do seu amigo animal.
Por onde aquilo passava ondas se formavam, mas Ubirajara não consegui ver do lugar que ele estava.
De repente o balaio de Ubirajara pesou de tal forma que segurou o barco que ele remava.
Lançou então uma pedra amarrada ao barco com um cipó para atracar e começou a puxar para dentro o balaio.
Quando retirou da água, havia uma quantidade enorme de peixes de vários tamanhos. Nessa hora aquilo que estava vindo em direção ao barco estava muito próximo, tão próximo que o tangará de Ubirajara até desistiu de tentar alertar seu dono.
Ubirajara colocou o balaio dentro do barco notou que ele havia pescado era bem mais do que precisava para aquela noite.
Sem perceber algo protuberante começava a emergir das profundezas do rio para ataca-lo.
Ubirajara decidiu devolver os peixes que não seriam consumidos a água.
Assim que ele jogou os primeiros de volta ao rio sentiu gotas de água caírem sobre sua cabeça.
Ao olhar para cima, não havia mais nada. Ubirajara até pensou que pudesse ser gotas de chuva. Então com remandas rápidas voltou para margem do rio feliz de estar levando alimento para seu povo.
De alguma forma a atitude de devolver aqueles peixes ao rio fez com que sua vida fosse polpada.
Chegando na tribo o Pajé já o esperava para repreende-lo quando o povo o viu com muitos peixes e vieram todos ao seu encontro com felicidade estampada nos olhos.
Ubirajara fitou os olhos do seu pai com um olhar de certeza do que fazia, mas seu pai não retribuiu, apenas abaixou a cabeça e se entristeceu, pois sabia que algo ruim se aproximava, e que a atitude do filho provavelmente aceleraria o processo.
Ubirajara então entrou com um peixe grande na oca e o entregou ao Pajé.
— Esse é para o senhor. — Disse Ubirajara.
— Você ignorou uma ordem minha.
— Mas eu estou bem, nada me aconteceu.
Uma certa indignação tomou conta de Ubirajara, que sentia que nada satisfazia o seu pai. Nunca nada era bom o suficiente.
— Leve esse peixe daqui. — respondeu o Pajé.
— Mas pai! Você precisa se alimentar.
— E também preciso de um filho que saiba me respeitar. — disse Pajé entristecido com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Ubirajara jogou o peixe no chão e saiu correndo em direção ao rio.
Naquela hora Pajé soube que jamais veria seu filho novamente.
Ubirajara então entrou novamente no barco, pegou todas as coisas de pesca e voltou para o rio.
Fez a mesma coisa que havia feito a pouco, e como da outra vez o balaio subiu ao barco recheado de peixes.
Novamente algo se movia nas águas em direção a Ubirajara, que diferente da outra vez não quis devolver os peixes ao rio.
Assim que tocou o remo nas águas alguma coisa muito forte bateu no casco do carco que foi arremessado ao ar como quem joga umas cascas de fruto ao léu.
Ubirajara assustado começou a se afogar, e com braçadas rápidas tentava alcançar as margens do rio. Quando olhou para trás viu algo vindo sobre as águas com imenso furor em sua direção, jatos de água eram lançados para cima e um som meio que se afogando acompanhava aquela forma indefinida.
Enquanto batia braços e pés na água, algo entro na carne da sua perna e o puxou para baixo, com muita luta Ubirajara conseguiu se soltar e alcançou a margem, saindo rapidamente da água.
O fato de ter bebido muito água na fuga embaraçou sua visão.
Viu então algumas pessoas se aproximando, mas não eram gente da sua gente, temeu naquele momento como nunca havia temido antes.
Segurou uma pedra lascada bem forte na mão e se ergueu partindo em direção daquelas pessoas que se aproximavam.
Era a coisa mais estranha que jamais tinha vista, homens assim como ele, porém brancos e cingidos de uma couraça estranha, empunhando nas mãos lanças diferentes de tudo que já tinha visto.
Assim que se aproximou erguendo as mãos para atacar um estampido seco ecoou pelo vale.
Ubirajara parou no mesmo segundo e com as mãos no peito viu seu sangue quente escorrer pelas mãos, e aos poucos viu a vida esvaindo do seu corpo.
Pajé por sua vez gritou dentro da oca e chorou.
E foi assim que os Portugueses chegaram na região onde hoje é o estado de Alagoas, a foz do Velho Chico.