Caneta e papel
Um quarto pobremente iluminado. Lamparinas como fonte de luz. Em um dos cantos, uma escrivaninha com apenas uma cadeira posta. Ao seu redor, várias estantes, repletas de livros, dão ao lugar a aparência de uma biblioteca.
Sentado à escrivaninha, um veterano escritor. Dos livros ao seu redor, vários de sua própria autoria. Os temas, variados: de romances, a crônicas e livros de ficção - estes, particularmente seus favoritos. Naquela noite, preparava-se para iniciar mais uma crônica.
O toque na caneta, a mão apoiada no papel. Ao lado, uma pequena luminária clareia sua nova criação. Encostada à mesa, uma lixeira repleta de papéis amassados: resultado das várias tentativas frustradas de iniciar seu novo texto.
No ambiente, apenas dois sons se destacam> um vinil e um relógio de parede, tiquetaqueando. Cada "tique-taque" denunciando a passagem do valioso tempo. No vinil, uma música clássica que já tantas vezes antes inspirara o autor.
O ambiente pacato era uma opção: sua casa de infância. Outra de suas fontes de inspiração, aquele era seu local preferido nos momentos literários. Ali, já escrevera grandes histórias, criara e aperfeiçoara personagens icônicos, muitas vezes inspirados em conhecidos seus.
Entretanto, mais uma vez encontrava-se naquela situação: o momento de escrever a primeira frase - para ele o mais difícil. Aquela frase definiria todo o rumo da história.
Já havia escolhido o tema: seria a própria escrita, velha conhecida sua. De início, pensara que logo chegaria ao final. No entanto, rapidamente os minutos se tornaram horas e nem a música, nem o local, pareciam-lhe ser inspiração suficiente.
Levantou-se, abriu a janela e contemplou a rua. O chão de terra, por onde tantas vezes correra; as casas, tão simples quanto o chão, com pouca distância umas das outras. Seus donos à porta, colocando os assuntos em dia: àquela hora, aquele era o entretenimento mais comum na região.
Fechou a janela e encaminhava-se de volta à cadeira, quando ouviu algumas batidas à porta. Não esperava visitas, não àquela hora da noite. Enquanto dirigia-se à entrada, só podia imaginar quem poderia encontrar. Chegando à porta, sentiu falta do olho mágico a que estava acostumado em sua residência principal.
Sabendo que a rua estava levemente movimentada, abriu a porta. À sua frente, um rapaz, próximo de seus 30 anos, o corpo marcado pelo trabalho manual: inconfundivelmente, seu melhor amigo de infância.
Abraçou-o e convidou-o a entrar, mas o amigo lhe falou que sua visita era rápida. Ouvira que o escritor estava visitando a localidade e decidira passar por ali. Trazia consigo um pedaço de bolo de cenoura preparado por sua mãe: sabia que era seu preferido.
Conversaram por alguns minutos e marcaram de colocar os assuntos em dia na manhã seguinte. Despediram-se com outro abraço e o escritor voltou ao seu lugar de produção.
Sentou-se e abriu o recipiente em que estava o pedaço de bolo. O cheiro por si só já o fez relembrar mais uma vez a infância. Uma mordida, e o sabor trouxe forte a memória de sua mão: afinal, fora ela que passara a receita à mãe de seu amigo.
Lembrou-se de quantas vezes a telefonara em momentos como aquele. De uma rápida conversa com ela, sabia que era possível obter inspiração suficiente, até nas situações mais difíceis.
Fechou os olhos e sentiu uma lágrima correr pelo rosto. Buscou se lembrar da última conversa que haviam tido. Guerreira, dedicara sua vida para que seus filhos pudessem viver em tranquilidade. Enfim, lembrou-se: eles haviam combinado de passar as férias com a família novamente reunida. Não dera tempo.
Como de costume, ao final da conversa, perguntara-lhe qual deveria ser o tema da sua próxima história. Prontamente, ela lhe falou: "Escreva sobre o agora".
Comprometido a seguir aquela sugestão, segurou novamente a caneta, apoiou a mão no papel e escreveu a primeira frase: "Um quarto pobremente iluminado".