RETRATO DE UM PSICOTERAPEUTA DEPOIS DE JOVEM

Aproximo-me das minhas últimas décadas. Sequer sei se as terminarei (a finitude é o destino de tudo, já dizia Saramago). Enquanto lá não chego vou vivendo, e vivendo vou trabalhando.

Trabalho não por obrigação ou pela necessidade de sobrevivência, porém pelo prazer de ser quem sou e pela necessidade de vivência. Quis a fortuna que eu me transformasse em um psicoterapeuta, pois desde cedo, desde um pouco mais do que menino, iniciei-me a quem um dia seria quem hoje sou. Quiseram as estrelas que eu fosse um psicólogo, e psicólogo sendo fosse clínico. De todos meus acasos era fatal que aqui chegasse.

São tantos os caminhos da vida quando se é jovem. Poderia ter ido por ali, assim como por acolá. Contudo segui em frente depois da esquina. Cedo fiquei órfão. Antes de pai, aos dez anos, e de mãe logo após os dezesseis. Ainda imberbe e filho único, o rumo que quiseram para mim mudou, repentinamente. Acordei certo dia em um distante janeiro perto do mar, e estava só.

De minha mãe levo mais recordações do que do meu pai. Porém dele carrego a herança dos livros e do estudo. Das lembranças maternas trago desde então a leitura do livro que ela lia quando tinha eu 14 anos. De sua capa lembro-me do título: "Ajuda-te Pela Psiquiatria". Brotava ali, embora naqueles tempos sequer soubesse, o psicoterapeuta que me tornei. Fico a indagar, no distanciamento das décadas, o que fazia eu tão moçoilo folheando aquelas misteriosas páginas que mais pareciam me desafiar a decifrá-las do que a me devorarem. Compreendo agora que tentava entender minha mãe. Logo eu, tão adolescente e rebelde, frente a uma mulher despreparada à viuvez e a lidar com a juvenilidade de um filho rapaz. Se lia ela livros como aqueles, provavelmente não devia estar sendo feliz. Expiradas precocemente suas angústias, restou-me como legado reconciliar-me com ela no ajudar aos meus pacientes.

[A psicanalista Melanie Klein acreditava haver no psiquismo original um desejo de restaurar o objeto materno existente dentro de si. A intrínseca relação de amor e ódio gera, diz Klein, a necessidade psíquica de reparação]

O psicoterapeuta que hoje sou tem suas raízes lá, talvez, em algum remoto sentimento de culpa.

Os anos não passaram. Em mim os anos ficaram, tão cravados como as rugas que ora trago. Sou feito de dias, meses, anos e minutos. No intervalo do rapaz e do octogenário que sequer sei se mais adiante serei palpita neste homem aqui grisalho as mesmas apetências juvenis e a mesma sede do rapaz.

Cícero, em seu livro Da Senectude (44 a.C.), dizia gostar, assim como eu, do velho que tem dentro de si algo do jovem. Meu arrastado dia ainda não terminou, embora já passe mais da metade da caminhada ("quão breve tempo é a mais longa vida" - Fernando Pessoa).

Um tanto fatigado do ontem me perduro hoje. Cá cheguei sóbrio e rarefeito, mais afeito às transitoriedades, e por isso aceito todas minhas transformações. De eterno nos restará apenas o esquecimento. Antes que faça parte da desmemória do universo estou a viver esta minha imortalidade momentânea. Quero-me, portanto, assim como sou: interminável até o fim.

Nestes mais de trinta anos de estrada profissional, cruzaram por mim uma quantidade que não contei de pessoas. Com certeza centenas; provavelmente alguns poucos milhares, talvez, pode ser, jamais contei. Cada uma, ao seu modo e maneira, foi-me ensinando a humildade, tanto quanto respeitar as diferenças e melhor lidar comigo mesmo com minhas ansiedades e frustrações. Um oceano de pensamentos, sentimentos e jeitos de ser alargaram-me. Na intersubjetividade do encontro dual de nossos mundos internos desconstruímos e reconstruímos intimidades. Fiz conhecer e conheci em mim próprio também capacidades hibernantes, que não tinham ainda visto à luz do sol ou ouvidos de gente. Através de risos, choros, raivas, murmúrios, alegrias e tristezas, toda uma vida se descortinou com mais intenso brilho. É como dizia em um poema Pablo Neruda: "E entre as nossas cidades separadas/as noites, uma a uma, /juntam-se à noite que nos une".

Um dia fui novo, assim como serei mais velho um dia. O escritor e prêmio Nobel de Literatura (1946), Hermann Hesse, traçou a fronteira entre a juventude e a velhice. Para ele, "a juventude acaba quando termina o egoísmo, a velhice começa com a vida para os outros". Assim deixei o heroísmo irrequieto da juventude rumo à sabedoria dos mais antigos. Estou longe, sei. Porém menos longe hoje do que ontem.

Pretendo, quando mais adiante chegar, manter em meu corpo engelhado esta mesma rebeldia inventiva e criadora que ainda trago do menino e do rapaz: afinal, como escreveu Kafka, "quem possui a faculdade de ver a beleza, não envelhece". Quero, tal como Vinicius de Moraes, olhar as coisas através de uma filosofia sensata, e ler os clássicos com a afeição que a inexperiência de minha mocidade não permitiu. Assim, não é ruim envelhecer. Acalmam-se os nervos e diminui-se a sofreguidão da pressa. Passear pelas alamedas do tempo a contemplar minudências e perscrutar as frestas do silêncio assossegado do intervalar dos minutos.

A vida é um vento, um breve sopro. E no assanhar dos meus cabelos encanecidos chego à época dos desfazimentos. Tomo por mim o que dizia Fernando Pessoa: "Há um tempo em que é preciso/abandonar as roupas usadas". Embora no prazo permitido de minha existência não possa realizar todos meus sonhos, não fiz e nem farei de minha vivência um constante ficar à beirada de mim mesmo. Nunca nasci para ficar no raso.

Mais da metade da minha vida já foi consumada. De todas as vontades muitas não pude fazer. Das que fiz me realizei. Lá atrás em meus pretéritos sonhei ser psicólogo, escritor, professor, esposo e pai. Cumpri o que de mim projetei. Aqui cheguei e aqui ainda estou, porém de tudo que fiz e consegui ser é menos da décima parte da metade de mim. Minha grandiosidade juvenil mudou de rumo. Frustrado, cansei de tentar alcançar as estrelas, e aprofundei. O infinito não está no céu nem acima de mim. O infinito está em mim. Se vivesse mais quatrocentos anos não escavaria mais do que apenas mais alguns palmos do que já cavei. Ah! como daria todos estes anos vividos e todos os meus conquistados em troca de unicamente mais um palmo e alguns outros centímetros. A imensidão incalculável de um homem em seu interior não tem fim... Até quando a vida desistir de mim

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 09/03/2022
Reeditado em 09/03/2022
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