O aniversário do crime
1. Desde o dia 20 de fevereiro deste ano, 2022, vinha querendo escrever sobre o assassinato de uma freira baiana, ocorrido há 200 anos, na porta do seu convento. Inadiáveis e intransferíveis compromissos não me permitiam fazê-lo e fui adiando.
2. Na madrugada de hoje, horas antes do sol aparecer sorrindo, administrando mais uma insônia, achei um tempinho, e rabisquei esta croniqueta, recordando, dois séculos depois, a morte violenta de Madre Joana Angélica. O delito ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1822. Aproveito, e na pessoa de Irmã Angélica, homenageio a mulher, no seu dia.
3. Madre Joana Angélica tinha 60 anos quando foi morta pelos soldados portugueses contrários á independência do Brasil. Morreu de forma dramática. Morreu ao impedir que esses soldados assassinos invadissem, na raça, o Convento onde ela era a superiora e tinha 16 freirinhas sob sua guarda.
4. O Convento onde tudo aconteceu, construção de 1744, muito bonito, em pé até hoje, foi consagrado à Nossa Senhora da Conceição. Daí seu nome oficial: Convento de Nossa Senhora da Conceição. Ao nome oficial foi acrescido o nome Lapa, porque fica na Lapa, pedaço do bairro de Nazaré, e, afinal, ficou conhecido como o Convento da Lapa. Visitei-o várias vezes quando fazia meu curso de Direito. Dava pra ir a pé da minha Faculdade.
5. Abro, aqui, um parêntese. Quando me atrevo a escrever sobre a Bahia nunca deixo de declarar que não nasci na Boa Terra. Não sou baiano. Acrescento, em seguida, que moro em Salvador, desde 1958, ou seja, há mais de meio século. Perdoem-me se cometer algum erro ou simples equívoco, abordando assuntos da terra de Ruy Barbosa e Castro Alves.
6. Mesmo não sendo filho da Bahia, amo essa terra abençoada por todos os deuses; como se fosse minha terra, o Ceará. Gosto de escrever sobre coisas da Bahia, muitas, há muito, incorporadas à história do Brasil; como o assassinato de Madre Joana Angélica. Digo sempre que são tantas e belas histórias, belos causos, que minha caneta não sossega. A vontade é contá-los ou re-contá-los.
7. Foi assim. Quando os ousados soldados lusitanos tentaram invadir os claustros do Convento da Lapa, de Madre Joana Angélica ouviram o seguinte: "Para trás, bandidos! Respeitai a casa de Deus; antes de conseguirem seus infames desígnios, tereis que passar por cima de meu cadáver". E foi o que aconteceu: as baionetas criminosas dos soldados lusos traspassaram-lhe o coração, houve a invasão, e Angélica morreu. Quanta dignidade e coragem dessa religiosa!
8. Esse crime, ocorrido há 200 anos, fez de Joana Angélica uma heroína da Independência da Bahia. Por que da Bahia e não do Brasil? Porque, só depois de sucessivas batalhas em solo baiano, foi o Grito do Ipiranga consolidado. Na Bahia, em 2 de julho de 1823, foram expulsos os últimos soldados lusitanos contrários a que o Brasil se desapegasse de Portugal, definitivamente.
9. No seu artigo domingueiro, publicado no jornal "A Tarde", Dom Sérgio da Rocha, Cardeal Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, deu a dimensão religiosa ao ato corajoso de Irmã Angélica. Disse o Pastor, que a freira agiu "na defesa da vida e da dignidade de cada pessoa, especialmente das mais vulneráveis". Num mundo onde há santo pra tudo que é lado, Joana Angélica podia pelo menos ter sido beatificada, com base no que disse o cardeal.
10. Andei sabendo que o Convento da Lapa atravessa momentos difíceis. Suas finanças estariam abaladas. Apresenta sinais de deterioração, ameaçando seriamente o túmulo de Joana Angélica, que se encontra lá. É bom cuidar do Convento da Lapa, consagrado monumento religioso e histórico, antes que ele desmorone e vire um triste lixão; seria mais um em Salvador. E o túmulo da Madre Joana Angélica ficaria só nos livros e nas crônicas que eu e outros escrevemos. Um conselho que me parece oportuno: aprenda o Brasil a guardar, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, os restos mortais dos seus heróis e heroínas.