Equações matemáticas
Seus olhos já não refletiam o brilho de sua mente e o sorriso, cansado, denunciava os anos que atravessavam o seu coração. Pé ante pé, como se o tempo já não sustentasse o peso das décadas, ele se dirigia até mim com dificuldade, ainda que demonstrasse o carinho entusiasmado que nutríamos ao longo dos anos. Ali, diante de mim, estava um senhor que muitos já não reconheciam: no lugar de meu avô, surgira um novo homem, imerso em seus próprios pensamentos. Como grande matemático, as equações agora regiam seu dia-a-dia: eram respostas simples, para problemas complexos. Tudo se resumia à matemática e as nossas conversas, antes tão longínquas, agora repetiam-se, como o balançar das horas.
Conservávamos o carinho de outrora e o amor, quase transcendental, que nos conectava em um plano muito alem dessa existência. O meu nome, sempre no diminutivo, agora o confundia: por que “Fernandinha”? Eu já não era tão pequena! Ou era? “O diminutivo não encaixava mais na equação matemática”, ele dizia. Talvez fosse essa a sua forma de explicar o meu crescimento, por meio de fórmulas que, tão exatas, entregavam-lhe um pouco de paz.
A verdade é que os números funcionavam como lentes para que ele, tão confuso, pudesse ver o mundo: até mesmo objetos do cotidiano poderiam ser traduzidos em equações matemáticas.
Quando confrontado, ele repetia: era engenheiro, o único da família, e era mais que claro que somente ele conseguiria compreender essas tais equações matemáticas, enquanto o mundo ao nosso redor apresentava-se de forma lógica e, à sua maneira, racional. Na sala de estar de seu apartamento, tentava compreendê-lo: ele apontava, para mim, o seu chinelo e dizia que, ali, estava a equação matemática. Procurei, no mais fundo de mim, como o convencer do contrário. Mas, como fazê-lo? Eu não era matemática, ele repetia. Jamais conseguiria. Talvez, não precisasse.
Naquele instante, seus olhos, tão azuis, perdiam-se na distância até os meus. Sabia que, por vezes, ele já não me reconhecia. As nossas tardes de sábado, que pensara ser inesquecíveis, agora eram uma lembrança só minha. A verdade é que me lembrava de tudo: dos seus olhos azuis, do seu abraço, do tom de sua voz quando me ensinava a solução para exercícios de matemática que pareciam os mais complexos do mundo, da sua alegria quando me conduzia até a resposta certa. Em algum lugar, por detrás dos olhos tão bonitos, morava o meu professor preferido.
Talvez ele esteja certo: as equações estavam por toda a parte. Elas estavam nas listas de exercícios que eu, ainda adolescente, levava pra que ele me ajudasse a resolver, na nossa mesa de centro, com um café passado e, claro, com direito a histórias sobre sua vida. Lembrava-me de todas elas! Lembrava-me de tudo. Lembrava-me dele, antes do diagnóstico que teimava em lhe furtar a lucidez.
Aos poucos, suas memórias se apagavam, como quando atravessamos um longo corredor iluminado, acionando os interruptores, sem deixar qualquer claridade para trás. Nomes e histórias ficavam pelo caminho, junto de algumas das minhas lembranças mais queridas. Perguntava-me o que restaria, temendo ser também esquecida.
O sorriso no seu rosto ao me avistar ou mesmo as brincadeiras com o apelido carinhoso que sempre me chamara, levantavam-me a suspeita de que o amor, o afeto e o carinho são imunes às doenças da mente. Seria, pra sempre, a sua netinha, sua Fernandinha. E ele, o meu “vovô”, tão querido.
Era essa a resposta para a tal equação matemática: o amor, meu avô, não se esquece. Recordaria-me de tudo, por nós dois. Não me faltariam forças para lembrá-lo: serás, pra sempre, o meu professor preferido.