Fogo que se alastra
Fico surpreso quando alguém me chama de poeta.
Nada contra, fico até envaidecido, mas não sou poeta, sou cronista, contador de casos. Às vezes invento frases: O que pensa a lagartixa na parede? Não pensa em quase nada, apenas escuta o canto da cigarra e pensa que ela está por perto, desconhece os segredos dos quintais e a casca da árvore que derrete.
De onde sai isso? Da febre ardente me dominando e me obrigando a escrever.
A febre vem do gosto pela leitura, sou para sempre um devorador de textos.
Não tive uma infância diferente dos da minha geração, não fui algum tipo de píncaro ou coisa assim, gostava de jogar bola, soltar pandorgas e competir com bolitas. O único senão é que, diferente dos meus amigos, sempre gostei de ler, não dormia sem antes pegar um velho livro empoeirado na estante, daqueles que traziam na essência o prazeroso cheiro das páginas do livro.
Esse cheiro trago comigo até hoje, como o canto da cigarra entrando nos ouvidos da lagartixa.
Numa época que não existia internet, eu mergulhava no mundo através da leitura e disso carrego enorme orgulho, aprendi muito, descobri até que a Lituânia existia, vi terras que meus olhos jamais alcançarão, conheci lendas, vesti roupas iguais às de Carlos Magno e junto dele caminhei em busca da conquista da Itália.
Fiz armas, armazenei amores impossíveis e, num rompante, desprezei Rapunzel.
No espasmo de surpresa profunda, descobri que no interior da Inglaterra viveu no século XIX uma escritora de excepcional talento para criar personagens, tão densos, tão fortes, até hoje caminham na minha memória para nunca mais sair. Era uma moça extremamente tímida chamada Emile Brontë. Ela me contou de um certo morro pelo qual se espalhavam os ventos uivantes.
E desde então, o vento soprando naquele morro se misturou ao fogo que em mim se alastra. Queima, queima e me faz tão bem.
Eu ainda não havia lido Vinicius de Moraes quando escrevi pela primeira vez “Fogo que se alastra”, até surgir diante dos meus olhos um texto no qual o poetinha escreveu, muito antes, em homenagem ao Antonio Maria: “Fogo que se alastra”, texto emocionante, de um poeta magistral, feito para demonstrar a dor da saudade causada pela morte inesperada do amigo de copos e letras.
Ah, eu achei aquilo tão lindo, mas ao mesmo tempo decepcionante, porque imaginava a frase fosse minha, construída num momento de incertezas, diante de um desses percalços da vida que a gente não sabe o que vai acontecer mais adiante e se assusta quando percebe as dificuldades aumentando sem cessar, sem dar trégua e me restou exalar o fogo de dentro de mim, direto ao canto direito do meu caderno, em letras firmes, quase perfurando o papel: A dor que me consome é fogo que se alastra!
Hoje rio ao recordar o momento: tudo passou, como uma canoa de papel deslizando na enxurrada após o temporal.
A dor de adolescente é sempre a maior de todas.
E desde então nunca mais parei de escrever, permitindo o fogo se alastrar cada vez mais, até encher o caderno, depois os muros, por fim as páginas dos meus livros, lá onde o fogo para sempre haverá de queimar.
Quando acordei nesse sábado, me detive diante da foto do Mário Quintana.
A ternura constante emoldurando o rosto do poeta serviu-me de inspiração para escrever essa crônica.
Diante dos olhos serenos do grande poeta, o fogo começou a se alastrar novamente dentro de mim e Mário sussurrou nos meus ouvidos: “escreva”, mas me detive por instantes diante do texto do próprio Quintana: “O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.” E derreteu outra frase que eu vinha aprontando, algo semelhante a isso, mas se tornou um tanto desprezível, algo mais ou menos assim: “Não se pode desprezar a suavidade do silvo do vento.”
Resolvi então deixar o vento em paz.
Mas sigo tentando outras frases, ainda que o vento não assopre e o silvo muitas vezes se perca entre as labaredas do fogo que se alastra, espantando a lagartixa da parede e indo embora após a janela, súbito, como se fosse o canto da cigarra.