Ave Maria, João
Ave Maria, cheia de Graça. Assim João começa a sua noite após encerrar seu dia, todos os dias. La na roça, bem no canto de uma montanha, a fumaça do fogão à lenha anunciava que o biscoito caseiro estava pronto pra comer.
João rezava. Na capela os sinos batiam seis vezes, e o ”bença mãe, bença pai” ecoava pelo chão de terra. Descalço ele ia pedir mais uma benção a quem todos os dias rezava por ele. João nasceu forte, mas com o tempo seus pés se entortaram. Menino sem vacina, naquela época, não vingava. Ele cresceu, mas frágil ficou. Bendito seja ele que Jesus curou.
Sua mãe muito devota e seu pai de pouca crença, na tabuada da vida vezes foram as vezes que João se multiplicou. Se casou e cinco filhos conquistou. La na vila da roça perdida, João era conto dos padres e das carolas, mas João gostava mesmo é de contar suas próprias histórias. Poesia não fazia, mas em noites estreladas de verão, ou frias ao redor da fogueira, João debaixo dos coqueiros reunia sua família e de lá não saiam até que o bocejar de bocas o calasse. Por mais que repetidas as histórias fossem, sempre era uma boa companhia daquele infinito céu escuro estrelado.
Com o passar do tempo, o forte João, das repetidas e intermináveis histórias, tornou-se cada vez mais fraco. E por ironia, suas histórias tornaram-se cada vez mais adoradas. Triste fim dos humanos.
Então João sentou-se na escada do casarão e contou de forma inédita, para surpresas de todos, a vez que ele e seus companheiros de trabalho, retornando da lavoura ,avistaram de longe a igrejinha reluzente. Indagaram-se por que tamanha luz. Nunca a viram tão iluminada. E quanto mais se aproximavam, mais a luz se propagava. A cruz de madeira à frente da igreja pegava fogo. Seria uma vela aos pés da cruz que deu início a tudo aquilo? Certamente que não. Necessário seriam dezenas de velas para dar fim em uma tradição da “Vila dos aflitos”. Aflição! João se acendera. Seria por isso o nome dado àquele cantinho no pé da serra da comunidade de São Clemente? Seria o destino daquela comunidade, sempre pedir clemência? João nasceu assim: pedindo clemência. E lá estava ele novamente, aos pés da cruz com baldes de água e de esperança. Que daquele povoado não lhe fosse tirada a sua maior expressão de fé. A cruz de frente a uma igreja que era mantida pelas idas e vindas de padres a cada mês.
João se enche de lágrimas e seus netos, assim como seus pais anos antes, pensam ser apenas palavras de um velho repetitivo que não tem mais nada a contar. Mas agora todos o ouvem. O velho João está em chamas. A cruz queimou, mas no outro dia estava intacta. Quem viu, creu. E naquele dia, todos creram na ingênua alegria que João sempre teve pela vida.