CRÔNICA | Reminiscências do chinelo

Não sei precisamente onde li, se li — devo ter ouvido num documentário –, mas sei que Villa-Lobos, quando de sua apresentação no Municipal de São Paulo durante a Semana de Arte Moderna, fora vaiado porque subiu ao palco de… chinelo. No singular mesmo, porque no outro pé calçava sapato. Assim, com um pé na tradição e o outro na modernidade, o condutor do trenzinho do caipira dera a sua contribuição ao movimento. Esquisito movimento.

Hoje pela manhã, enquanto ainda sentado na cama procurava com os pés os meus chinelos, ocorreram-me algumas reminiscências. Lembrei do dia em que, em companhia de minha tia e alguns primos, fui ao centro velho da capital. Frio, garoa, sapatos enlameados… Esse dia permaneceu mais nitidamente em minha memória por dois motivos: fora a primeira vez que vi, assim de perto, em detalhes, o Mvnicipal; e porque fora a primeira vez que presenciei uma tentativa de assalto.

Exatamente ali, nos primeiros degraus da escada do complexo que integra a fonte dos desejos e o monumento a Carlos Gomes, na Praça Ramos de Azevedo. O trombadinha não devia ter mais do que vinte anos; estava tão assustado quanto minha tia. Disse meia dúzia de palavras confusas das quais só inteligimos dois palavrões. Desapareceu tão rápido quanto aparecera, e levou consigo só os objetos de valor imaterial. Perdemos o encanto do passeio.

Fora quando percebi que o dia estava cinza; não sei se os outros já haviam se adiantado nessa percepção. Terminamos de subir as escadas, atravessamos a rua da Praça R. de Azevedo e fomos nos abrigar sob os arcos em estilo renascentista, barroco e art noveau do Mvnicipal. Engraçado. A primeira vez que vi aquela belezura de construção, naquela típica tarde paulistana, tarde de garoa, eu experimentei a força de duas emoções antagônicas: o deleite da beleza presente em cada detalhe do theatro, e o terror infligido pelo trombadinha.

Daquela mesma fonte que me contara sobre o chinelo do Villa-Lobos eu soube também sobre as reações do público durante as semanas que se seguiram à semana das apresentações. Eu não quero ficar aqui de meias palavras. Não gosto das propostas da Semana de Arte Moderna de 1922 porque não gosto da fealdade das coisas artificiais. É muito simples. Aliás, lembro agora, a primeira vez que, durante uma aula de desenho no ensino fundamental, a professora — uma mulata inesquecível — pediu para que copiássemos o estrambólico Urutu da Tarsila do Amaral, eu pensei que a tal da Tarsila fosse uma das nossas colegas da escola.

Custei a acreditar que aquilo pudesse ter alguma relevância, mas como era aquela professora quem falava, quem expunha, com toda a veemência do seu ser, a estética revolucionária do ovo e da cobra num espeto, cedi, mas não sem desconfiança. Não entramos no teatro no dia da tentativa de assalto, mas passamos quase uma boa hora contemplando os detalhes do prédio — é realmente exemplar a forma como nós, em criança, depositamos generosamente nossa atenção sobre as coisas elevadas.

O trenzinho do caipira é uma das melodias mais belas que já ouvi na vida. Não sei se Villa-Lobos regeu essa composição ou improvisou a melodia no piano quando se apresentou de chinelo no Theatro Mvnivipal. Seja como for, de chinelo ou de casaca, de gravata borboleta ou de samba-canção, a beleza flui, como um regato num declive. Coisa que não se dá com o Urutu. Este, para valer a pena a atenção do sentido da inteligência, teria de ser outra coisa; de preferência uma coisa que não ofendesse os olhos.