Ave Mulher
Ela soltou seus cabelos no vento, os ventos que voam como as aves da anunciação, que varrem a saudade dos corações aflitos.
O vento que seca as lágrimas e traz o cheiro da pedra, da areia e do mar. Ela limpou o batom dos lábios e removeu a maquiagem borrada de lágrimas na água salgada do mar. Seus cabelos cheirosos soltos ao sabor da brisa marítima voavam com as garças no céu azul e litorâneo.
Ela pensava no quanto deixara para trás - um coração esmigalhado, uma criança chorando no berço e fotografias inúteis jogadas no chão. Pegadas de sangue que se interrompem no carpete macio e impecável; um copo vazio e uma lâmina suja de sangue. O cheiro da casa, o cheiro da gaiola ainda está impregnado em suas narinas vermelhas. Seus olhos inchados ainda guardam a lembrança daquilo que ela quer esquecer ou morrer. Ela apenas se lembra de ter aberto a porta, tirado os sapatos de salto alto e caminhado até a praia, sentindo com prazer o asfalto quente queimando seus pés brancos e delicados. Os olhos fitando obstinadamente o horizonte como se procurasse uma brecha por onde pudesse escapar de seu orgulho dolorido. Sentia com preguiça a brisa morna revoluteando entre suas coxas nuas, por baixo do vestido fino e sedoso.
O vento soprou e levou primeiro o seu vestido...
Com a suavidade e serenidade de uma mão gentil e generosa. A seda fina do seu tecido caiu sobre as águas selvagens do oceano como uma pele abandonada e afundou silenciosamente. Os seus seios nus, eriçados e inchados como uma fruta madura palpitavam, e sua boca fina engolia a brisa – como se varresse algo do fundo do seu peito. A água molhava seus pés e as ondas subiam para banhar o seu ventre e a sua pele nua e arrepiada. Queria ir embora com o vento; queria que a brisa lavasse a culpa e que o sol, nos cumes do horizonte, como as penas da ave sangria, queimasse o desejo de sua alma.
Queria voltar para o que era antes de ser sonhada e desenhada como a imagem do mundo – sempre presa a esse mistério que o homem invade, doma e destrói. Diante da terrível dor de sua condição ela precisa se esvaziar, precisa cerrar os grilhões com os dentes e com toda a força que lhe resta.
A água, golpeando as margens da costa, levou agora os seus cabelos...
Como uma nuvem de pontos cintilantes, os seus cabelos claros e ondulados se dissolveram na brisa; eram cinzas incandescentes, eram gotas de prata se fundindo com o vento... Sua cabeça nua brilhava como uma concha de mármore, as suas pálpebras fechadas e os cílios grossos pareciam a imagem do sono e do contentamento. A mulher de cabelos longos e pele de sol estava agora impassível, um sorriso discreto nos lábios onde já não havia mais palavras nem mentiras.
Uma onda arrasta o seus olhos...
Suas órbitas vazias, deitadas na escuridão, perderam o brilho do mundo, o sol caiu no horizonte e a noite eclipsou aquela tarde suicida. Seus olhos claros como pedras de âmbar rolaram na areia molhada e se esconderam dentro de uma concha que logo fora enterrada pela maré. Sem juízo e sem palavras, aquela fêmea dilacerada ainda sorria, indiferente àquele vento cortante que regelava a sua pele fresca, àquelas águas selvagens que arrancavam pouco a pouco cada parte de si. O sorriso branco e jovial nos seus lábios assumiram a expressão do êxtase. Os olhos ocos iluminados por um sol vermelho e crepuscular. Era a visão da morte, mas não havia a dor nem a culpa da partida.
Uma onda maior, se precipitando como uma imensa crista do fundo do oceano, arrancou as suas pernas brancas...
Elas tombaram como dois pilares de mármore e se dissolveram em areia fina que o vento arrastou para a maresia. Seu dorso esbelto, semi-enterrado nas areias escuras, se sustentava, como uma escultura grega, sobre os braços finos e pálidos, se desmancharam com a escuma do mar. Ela sorria histericamente, com aquelas órbitas escuras e vazias, o sorriso rasgado e aberto como a expressão dos loucos, dos alucinados. Aquela cabeça nua, que não era mais feminina, se projetava como o semblante de um animal, de uma ave com asas cortadas.
A maré arrastou o seu dorso, que o mar levou e as ondas, como feixes de navalhas afiadas, o destroçou no seio do oceano...
Do seu pobre dorso incompleto sobrou apenas a cabeça nua e frágil, com um sorriso mesclado de angústia e êxtase congelado na sua face estranha e impessoal. Ela sempre amara aquele pedaço solitário de terra. Amava aquelas areias e as pedras litorâneas... e amava aquele céu que se perdia no horizonte.
Amava ainda mais agora que a paisagem, livre da moldura dos seus olhos, estava mais perfeita, mais clara, mais fiel a si mesma.
Janielson Alves