Cartas de Salamanca - Primeiras Impressões
Primeiras Impressões
Quando o avião começou a taxiar
no aeroporto de Madri e o comandante
anunciou a temperatura externa,
não dei ouvidos, até mesmo desprezei
as informações, como geralmente
o fazemos com os enfadonhos
avisos dos pousos e decolagens da vida.
Porém, o impacto foi grande. O
frio era intenso. Não fora a acolhida
calorosa de Alice e Vilani, cobrindo-me
de beijos e abraços, além do sobretudo
tão gentilmente providenciado
pelo amigo-irmão Alexandre Oliveira,
eu teria sofrido bastante nesta
minha chegada às terras espanholas.
De Madri a Salamanca são, aproximadamente,
duzentos quilômetros.
No percurso não vi terra. Os dois lados
da estrada estavam literalmente
cobertos de neve, até onde a vista alcançava
— conseqüência da intensa
nevada da noite anterior. Paisagem
deslumbrante. Cinematográfica, diria.
Tentei intercalar o meu alumbramento
com as novidades que eu ia logo
contando sobre nossa terra, além
de administrar as inevitáveis comparações
que borbulhavam em minha
cabeça sonolenta.
Lembrei-me, por exemplo, de
uma música do grande paraibano Sivuca,
em que determinado momento
fala que “o chão virava neve de tanto
algodão”. Só que ali não era a abundância
do velho ouro-branco, sempre
sonhada pelo nosso sertanejo; era neve
mesmo. Salta-me ainda à lembrança
uma outra ligeira emulação, talvez
descabida, entre aquele gigante cenário
com o de nossas brancas salinas.
Creio que a mente ia, em socorro
ao corpo, estimulando algumas digressões
para amenizar a sensação de
frio que não arrefecia... O tímido sol
que naquela manhã brilhava, também
me fez recordar uma frase muito
usada nos veementes discursos contra
a ditadura militar brasileira: “Democracia
sem liberdade é como sol
de inverno, ilumina mas não aquece.”
A assertiva foi-nos muito útil para
criticar o propalado período da
abertura, lenta, gradual e segura, que
já alardeavam como sendo de um Estado
democrático... Um quarto de século
depois, excetuando-se a parte referente
à questão política, a frase caía
como uma luva sobre aquele ensejo.
A chegada a Salamanca nunca sairá
de minha mente e retinas. A cidade
parecia sonolenta. Apesar de o calendário
marcar o domingo de carnaval,
não havia movimentação que lembrasse
tal data. Depois eu soube que,
dada a forte presença da igreja católica,
somente a Quarta-feira de Cinzas
é referência, por assinalar o início da
quaresma. Os transeuntes que consegui
enxergar, circulando agasalhados,
estavam a compor uma espécie
de quadro que ia se descortinando ao
meu olhar curioso.
Uma fina camada de neve cobria a
belíssima catedral, feito um véu de
noiva, dando-lhe um tom ainda mais
distinto. Ela, a Catedral Nova, cujo
início da construção data de 1513, é
considerada “el último suspiro del
gótico”... O monumento histórico
chama a atenção de quem adentra a
cidade. Fiquei feliz, por ainda existir
cidades cujas torres da igreja principal
não perderam seu “lugar de destaque”,
sucumbindo aos néons das
altas placas dos McDonald’s da vida.
Dias depois, em uma visita especial,
entendi mais um pouco quanto à
grandiosidade da basílica religiosa e
sobre a importância do que eles proclamam
como sendo “900 anos de
história e de arte”... Em verdade, são
duas catedrais compondo um belíssimo
complexo arquitetônico. Além
das catedrais, literalmente coladas,
existe um “claustro” e outras dependências
agregadas, transformados
em museu. A outra catedral, a velha,
cujo início da construção nos remete
ao século XII, possui planta, capelas e
arcos exteriores em estilo romano e
outros aspectos da arquitetura em estilo
gótico.
Nessas primeiras incursões por
Salamanca, se fosse necessário, eu
apontaria a preservação do patrimônio
histórico como característica mais
marcante. Um sentimento arraigado
que chega a nos causar uma enorme
ponta de inveja. Mas isto é assunto
para outra prosa.