Autorretrato
Autocrítica desde o primeiro traço, culpo a musa inspiradora, é fato que não me entendo, então como me colocar no papel?
A primeira coisa a ser feita é a base, um rosto muito grande para uma pessoa maior ainda, em agonia, nunca destravando o maxilar que vive em tensão constante, aguardando o pior.
Depois vem as orelhas, relativamente proporcionais aos horrores que já ouviram, de si e dos outros, o dito e o não dito, é pena não receberem tanto ânimo quanto gostariam, ao menos atentas, quem sabe um dia.
A boca já é mais complicada, lábios maltratados pelo tempo, histórias, choros, beijos, risadas, fofocas, mordidas, críticas… muitas linhas a traçar, é mais difícil do que parece.
Não sou eu no papel.
Luto para descobrir quem eu estou desenhando, mas não se parece com a figura caricata no espelho, apago.
A folha borrada rememora as tentativas de me reinventar, todas falhas, se no fim das contas ainda sou eu, com as mesmas falhas e dúvidas.
Meus olhos parecem mais defeituosos do que nunca, ainda que tivesse sete pares deles não conseguiria me ver, quem eu quero que vejam ou quem eu gostaria de ser.
O temor ao espelho advém da falta de certeza, sobre o eu, sobre o que vejo. Se não posso confiar no meu ponto de vista, então em qual devo confiar?
Bom mesmo seria ser espectador de mim, me enxergar de fora e para de me habitar por um tempo, umas férias de verão do meu corpo. Me ver em terceira pessoa, sem o filtro da não benevolência do Eu para comigo.
Me alieno ao meu corpo, traí a essência que me habita, deixei de ter a liberdade de ser viva. Meu autorretrato tão mentiroso, quanto a minha identidade, já cheiro a guardada de tanto me privar de sol.