Força estranha
Eu soube, quando recebi a notícia que seria difícil. Só não pude prever que seria leve. Que dá pra ser leve ainda quando se trata das maiores dores que se pode lidar em vida. Talvez porque as dores reais, das quais se é impotente, salvo pela possibilidade única de sentir, não há para onde correr. Eu chorei pouco, bem pouco comparado ao amor que sinto. Eu não reclamei, não fiz alarde e nem disse nada dessas coisas que dizem numa completa irracionalidade diante a morte de um ente querido. Em meio a dor, tinha uma força estranha. Que nunca me dei conta de que tinha, porque claramente não tinha antes. Alguém perguntou ao meu avô quantos anos de casados tinham ele e a minha avó e ele respondeu sem precisar de tempo para pensar que haviam feito 53 anos e 3 dias. Eu me perdi na fala dele, eu me perdi na precisão que aquela fala carregava, não eram 53 anos. Eram 53 anos e 3 dias. Pensei o que é que fez com que ele pudesse ser tão preciso a ponto de jamais desprezar 3 dias ao lado daquela a quem escolheu para dividir a vida. Eu julguei mil coisas mentalmente e soube naquele momento, eu queria um amor assim, que estava longe de ser perfeito ou idealizado, mas um amor duramente construído e que vingou. Soube mais, quando olhei e meus olhos encontraram ele, a força estranha, os 53 anos e 3 dias... Tudo fez sentido. Foi também nessa oportunidade que ele fora "apresentado" a minha família. De forma nada planejada, mas não menos esperada. Lembrei Freud quando diz que "como fica forte uma pessoa quando está segura de que é amada", acho que é algo assim. Daí, talvez a força estranha tenha algo a ver com quem também está seguro de ter finalmente podido amar no cru da coisa, no real e banal. Não havia nada de extraordinário naquele dia, na verdade, havia era a dor de velar alguém muito amado. Era só a gente diante a finitude da vida. Sem glamour, sem espaço pra fantasia porque a realidade exigiu pés no chão. E era também muito mais, era o amor percebido no ordinário. Primeiro na fala do meu avô que ressoou internamente. Depois no olhar que procurou um lugar certo e impermanente, este último eu soube mais tarde, leia-se uma semana depois. Essa é uma memória que certamente não me deixará, e é também uma memória que denuncia um dos meus maiores medos: o de não ter memória. Num único dia, eu tive num espaço curto de tempo, em meio aos meus amores a experiência de lidar com os contrários da vida, evidenciados com tanta naturalidade. Eu pude ser muito alegre e muito triste, assim no extremo. Ainda tô parada nos 53 anos e 3 dias, quase oito meses depois, só que agora apesar da certeza que permeou meu coração naquele dia, meu olhar já não encontra o que busca…