O BELO E O CAOS
O BELO EM MEIO AO CAOS
Nelson Marzullo Tangerini
Drummond disse, certa vez, que ser o tempo todo pessimista seria uma coisa enfadonha. Foi mais ou menos isto o que ele falou. Já não me lembro muito bem. O mesmo poeta diria, em versos, que havia visto uma flor nascer em pleno asfalto de uma cidade dura e fria. O que significa que, por dentro daquela couraça mineira e mineral, habitava uma alma generosa, na qual latejava a esperança.
Em literatura, sempre gostei mais dos realistas e dos naturalistas; muito mais do que os românticos, resultado de meus mergulhos em Machado, Eça, Azevedo e Zola, entre outros. Embora a visão do Belo clássico ainda ressoe em minha alma, resultado de uma doce lavagem cerebral sofrida dentro de minha família – de origem italiana. Enfim, sou pessimista esperançoso, como o poeta de Itabira.
Em meio ao caos político, econômico e ecológico em que o Brasil está mergulhado, vêm à tona algumas lembranças – românticas, até – de minha infância e de minha adolescência, entre avós, tios, primos, primas – uma é pintora - e irmãos: algumas dessas pessoas falavam alto, gesticulavam muito com as mãos.
Ali, na sala, depois que a macarronada de minha mãe alimentava um batalhão, o futuro escritor mostrava com orgulho, aos parentes, os seus cadernos de escola, com suas notas razoáveis, as anotações da professora, enquanto fingia ser um aluno aplicado.
Ia mal em matemática. Não gostava da matéria; achava os números chatos, frios, calculistas, capitalistas, responsáveis pela multiplicação da pobreza, de favelas e, consequentemente, da desgraça humana. Ignorância minha, talvez. Até porque alguns professores, impacientes, me achavam burro, por não saber matemática, enquanto outros achavam que eu não ia a lugar algum e que meu futuro seria nebuloso.
O lado humano, para mim, era a língua, a arte, a geografia, a história, ainda que mentirosa. Depois vieram a biologia, a sociologia e a filosofia - que me ajudou a entender a matemática.
Em casa, um irmão formara-se em Biologia, especializando-se em Lepidóptera (borboletas), enquanto outro formara-se em Física.
O pai, professor de português, jornalista, cronista, poeta, compositor, teatrólogo, caricaturista; a mãe, uma humilde atriz de teatro, sem muita instrução, oriunda de uma família calabresa muito pobre. Autodidata, instruiu-se o bastante, por conta própria; falava o português culto, lia o Jornal do Brasil e bons livros de literatura.
Eu, pouco inteligente, não sabia, realmente, o que queria da vida. Jornalismo? Filosofia? Letras? Fiz faculdade de Jornalismo. Depois fiz Letras - e uma Especialização em Linguística.
Fui membro da Anistia Internacional, do núcleo de sócios do Museu do Índio, correspondi-me com a ong Survival International e me apaixonei pelas causas sociais e ecológicas. A revolta vivia acesa dentro de minha alma. Ela ainda arde dentro de mim, enquanto os anos avançam rapidamente.
Mas a literatura é a minha paixão: a literatura inteligente, libertária, humanista – não confundir com o Humanismo, período literário que libertou a humanidade das trevas e a preparou para o Renascimento. A poesia política de Castro Alves, por exemplo, me atingiu no coração. Depois vieram outros poetas e escritores da família, inspirados. Vivi a vida inteira cercado dos trabalhos produzidos pelo meu pai e, também, por um tio poeta – dos bons –, guardados em caixas de papelão à espera do meu encantamento.
E vieram outros mais, da literatura brasileira e universal. A obra de Drummond, para mim o melhor dos modernistas, e a de Clarice alimentaram a minha fome de literatura. E a esperança de me tornar um deles. A mineiridade e a mineralidade do gauche de Itabira me deixaram atônito, mergulhado no reino das palavras, assim como o amor por Clarice foi avassalador, intenso, inexplicável. Sabia, desde então, que haveria pedras no caminho.
Num poema, ainda engavetado, revelo, cinicamente, que ouvi Milton, que li Drummond e que percebi que o amor ultrapassa as montanhas. De Minas? Das montanhas que avisto de minha casa? Ultrapassa as montanhas de Minas, da Tijuca Maior e da Tijuca Menor, da Serra dos Pretos Forros e de todas as montanhas do mundo. Porque quero ser universal, porque quero tremular minha bandeira azul, como já escrevi em Cidadão do Mundo.
Sigo de trem nessas viagens – do centro do Rio de Janeiro a Japeri, de São João del Rei a Tiradentes. E, em sonhos, viajo pela transiberiana, no Estrela de Prata, de Moscou a Vladivostok.
Oscar Wilde escreveu que “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”. E eu não me contento em apenas existir. Plagiando o poeta Ferreira Gullar, diria que viver, para mim, apenas não basta. Quero ir além das montanhas e dos mares.
Sou um Cidadão do Mundo. Apenas isto. O tempo dirá se tenho chances de ser um artista das letras. Sou pessimista? Talvez. José Saramago, Prémio Nobel de Literatura, assegurou que “Os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas estão encantados com o que há”.
Enquanto dou amor mineral (Os diamantes são eternos) a uma poeta que escreve lindos e sensíveis versos e convivo com minhas plantas, meu totó e meus gatos, atravesso o mundo, nesse trem, mergulhando de cabeça na literatura universal. Vou da Argentina de Borges à Turquia de Pamuk, com escala na Itália dos Ginsburg, na Albânia de Kadaré e na Grécia de Sócrates.
NMT.