Croniquinha linguística IV
Eis que o marido, entusiasmado, faz juízo do amigo que os visitara:
– Que sujeito fantástico esse Lourival! E que cultura!...
A mulher não pensou e soltou seu julgamento:
– Para mim, um pedante, um antipático!
– Você não gostou dele? Tem opiniões próprias e fala um português de professor.
– Vou até perguntar pro Julinho como fala o professor de português dele. Se for que nem esse seu amigo, mudo de escola.
– Mas você não acha bonito falar assim com os esses todos no lugar certo, com os pronomes adequados?
– Para mim uma chatice. Viu como ele se referiu ao jogo do Botafogo?
– Não me lembro.
– Disse que ‘assistiu ao jogo’ e pausou bem o ‘ao’ como se estivesse nos ensinando.
– E você sabe?
– Lembro algumas coisas. Tive aulas desses assuntos. Mas aprendi o suficiente para entender que tudo tem sua hora certa.
– Eu é que não te entendo...
– Tem lugar para dizer ‘ assistir ao jogo’. Nem sei se tem lugar. Talvez tenha mesmo lugar para escrever ‘assistir ao jogo’.
– Acho tão bonito falar correto. Eu invejo quem fala assim como o Lourival.
– Eu não. Teu amigo inda é jovem e enche as frases de ‘cujo’. Um pronome morto.
– Morto?
– É... Ninguém mais usa. E ele parece ficar buscando a oportunidade e lasca preposições antes.
– Não estou entendendo você...
– Não lembra? Já na chegada disse da alegria que era visitar o amigo ‘em cujo casamento estive há alguns anos e nunca mais vi’. Antipatia... Antipatia. E as concordâncias?
– Você não concorda?
– Estão certas, mas inadequadas à nossa conversa. É um tal de ‘ocorreram fatos’, ‘bastavam palavras’, ‘surgiram dúvidas’etc., etc. Uma amolação!
– Queria tanto que nosso filho estudasse pra falar bonito que nem o Lourival.
– Também eu quero que Julinho aprenda e saiba usar a nossa língua respeitando a situação e os ouvintes. E saiba que falar é diferente de escrever.
– Como?
– Deixa. E por falar nisso, cadê aquele menino? Esse seu amigo me deixou precavida!