ENFIM JUNTOS

Josefa amava Antônio e Antônio gostava de Josefa. Lucas amava Marina e Marina gostava de Lucas. E porque já eram de maior idade e estava na hora, casaram-se. Foram morar com as respectivas sogras, até que um golpe de sorte deu-lhes por sorteio a casinha popular num bairro mais ou menos. Agora eram quase vizinhos, e Josefa conheceu Marina na feira, e Antônio conheceu Lucas no ônibus matinal. Combinaram. Tornaram-se amigos. Sem desconfianças, o tempo passava e deixava espaço para a realização da vida humana, em seus atos repetidos e seus rompantes nem tanto. Nesse andar, a amizade solidificou-se, tornou-se grande, de confiança, de deixar as chaves de casa uns com os outros, de contar segredos um para o outro.

Num belo dia, na lavagem de pratos depois do almoço, Marina e Antônio se olharam casualmente e uma faísca atentada correu entre os dois. E Marina amou Antônio e Antônio amou Marina; e a comoção da descoberta foi tão forte que chamou a atenção dos respectivos cônjuges, que naquela hora, mal souberam o que pensar. Assim sendo, não pensaram nada, e seguiram com o domingo, nos conformes do sempre.

Antônio mudou de caminho para passar na frente da casa de Marina de manhã, onde o encontrava o compadre Lucas, e Marina deu de aparecer para assistir a novela, com a desculpa de que sua TV estava com defeito. E de olhares em olhares, algo foi se aprofundando. O não dito não precisava ser dito, era escancarado, estava nos olhos, no tom de voz, na linguagem corporal. Era só questão de tempo até chegarem aos finalmentes. Por fim, incomodados com tanta insistência de doçura e tensão entre os dois, os cônjuges deliberaram afastar os embasbacados de amor. Josefa pagou o conserto da TV, Lucas arrumou um carro e passou a buscar o amigo todo dia. Josefa teve uma conversa séria com Marina, onde ficou estabelecido que, se ousasse encostar um dedo em Antônio, iria perder o escalpo. Lucas deixou claro que mulher de amigo tinha que ser homem para Antônio, caso contrário haveria violência e possivelmente uma emasculação. Usaram palavras fortes. Defendiam seu amor, estabelecido e sacralizado muito antes que esses dois se encantassem um pelo outro.

Os pais foram chamados e usaram artilharia pesada. Para começar, mal se conheciam. Quando o encantamento enfraquecesse, começariam as diferenças e desentendimentos. Iriam fazer da vida um inferno. Josefa estava grávida de Antônio e nunca, em toda a história daquela família presbiteriana há gerações, houve um pai que não criasse os filhos. A mãe de Marina, diabética, garantiu que não aguentaria um golpe daqueles. A chantagem emocional correu solta. Os pais de Lucas, que tinham criado 18 filhos juntos, apelavam para a vergonha. Os enamorados se viram bombardeados de todos os lados, puxados para longe um do outro, sentiam fisgadas dolorosas onde cravavam o arpão dos argumentos, mal e mal calavam a voz da consciência. Sofriam, enfim. E só quem já sofreu por amor pode entender.

Por fim deu-se um vencedor ao conflito. Antônio e Marina não deviam mais se ver, se falar ou, de qualquer outra forma, terem contato um com o outro. As famílias, satisfeitas, recolheram a artilharia verbal e voltaram à postura de não se meter na vida dos filhos. Mudanças de endereço foram providenciadas, cada qual o mais longe possível do outro. Josefa viveu com Antônio por muitos anos e tiveram três filhos. Marina teve um só, que, malgrado a cara feia do Lucas, chamou de Tony. Tiveram novos amigos, novos almoços de domingo sem o temor de que alguma coisa extraordinária viesse perturbar a ordem de seus dias, frequentaram as suas igrejas, acompanharam os pais idosos no final dos seus ciclos de vida, e evitaram, por toda lei, o tal assunto complicado.

Foi dito que as realizações da vida humana transcorrem no tempo. E, uma vez feitas, pelo próprio tempo são desfeitas. Seja dito, também, que há um sentido de satisfação em desempenhar os papéis que a família espera que desempenhemos. Por esta lógica, aquele amor devia se desvanecer com o tempo, enquanto predominava a sensação de adequação. A vida dos dois casais foi uma construção rigorosamente temporal, e sua satisfação veio principalmente de achar que estavam onde era esperado que estivessem. Dito isso, podemos inferir que tanto Josefa e Antônio, quanto Marina e Lucas, viveram boas vidas. E o amor? Oras bolas, há mais de uma maneira de amar, e qualquer uma delas valerá para atestar que, aqui, vive um ser humano capacitado para viver, segundo todo ditame da lucidez. E eles amaram. Josefa amou Antônio e Lucas amou Marina. E amaram ainda mais, visto que quase perdidos. Amaram os filhos. A vida. E com o correr do tempo, até mesmo uma parcela maior da humanidade.

E veio a pandemia, e as notícias ruins encheram o céu com suas asas. Numa delas, estava dito que Antônio tinha contraído a infecção. Em dois meses de luta, entubado e na UTI, resistiu ao desfecho como se lhe faltasse alguma coisa a fazer no seu tempo de vida. Inútil. A Covid-19 o levou numa tarde chuvosa de fevereiro, deixando Josefa viúva. Quando a novidade chegou ao lar de Marina e Lucas, com o pesar devido àqueles que um dia se conheceu, ela não apresentou nenhuma reação visível. Soltou uma exclamação educada e foi dormir. No outro dia, estava morta. Assim como os casais que viveram juntos por uma vida inteira e, ao se despedir um deles, o outro não vê mais motivo para ficar. Foi desse tamanho o amor de Marina e Antônio e, se houver mesmo o que sobrevive à hora final, os dois estarão juntos nesse exato momento, sem mais delongas e sem rancores.

Tangará da Serra, 16/02/2022.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 16/02/2022
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