AS GOTEIRAS DO TEMPO

Na minha infância, tão distante nas lembranças já embaçadas, perdi a conta das vezes em que acordei

quando chovia durante a madrugada. Isso não acontecia pelo simples temor infantil do tamborilar dos grossos pingos no frágil telhado de nossa casa, que também assustava, mas por causa das goteiras. Eu e meus irmãos, molhados do aguaceiro desabando lá fora e caindo em pequenos jorros por causa das telhas quebradas tanto pelos gatos vadios que passeavam todas as noites quanto pelo tempo, o sol, a chuva e o vento, corríamos para o quarto de nossos pais e nos jogávamos em sua cama. Eles, àquela altura, já estavam entregues à ingrata atividade de colocar as velhas panelas de ágata e alumínio pelo chão dos ambientes onde as muitas goteiras iam deixando o rastro da chuvarada, apressados de um lado para o outro, ensopados e cansados

Ali, todos juntos numa só cama, meus pais agora conosco e algumas panelas sob as goteiras em derredor, pois no quarto deles também havia um bom número delas, esperávamos passar a intempérie sem conseguir pegar no sono porque o chuveiro não parava, a madrugada continuava sob as águas vindas da torneira do céu, a casa toda tomava banho das biqueiras oriundas das telhas quebradas pela erosão do sol, das chuvas, do vento e dos gatos vadios que, à noite, sobre elas passeavam e brigavam numa algazarra quase homérica, e isso, por seu turno, nos acordava da mesma forma que as chuvas, então tudo que nos restava era apenas chorar e aguardar o fim do desalento.

Consertar as benditas goteiras nunca se mostrava tarefa fácil, nem mesmo para os mais experientes na área. O passo primordial para levar a cabo esse trabalho era, necessariamente, ter rios de paciência torcendo para estiar durante mais ou menos uma semana após a chuva, período suficiente para as telhas secarem totalmente, pois mexer nelas quando ainda úmidas as quebraria ou esfacelaria com facilidade, pondo tudo a perder; depois dessa indefectível"quarentena", quando o profissional - ou até mesmo meu pai com a ajuda de vizinhos - usasse a escada para alcançar o telhado, momento de expectativa e bastante cuidado, tinha de cercar-se de todos os cuidados, principalmente evitando pisar diretamente nas telhas. Assim, antes ele destelhava a partir do beiral e ia abrindo caminho para realizar o serviço, retirando as telhas quebradas e encaixando as novas. O problema era ter condições de comprar o material e pagar pelo serviço, o que nem sempre acontecia.

Hoje, graças a Deus, as goteiras são apenas recordações pesarosas de muito tempo atrás, uma página meio borrada que os arquivos de minha alma insistem em conservar nalgum cantinho escondido do tempo. Servem simplesmente para, de quando em vez, reunido com filhos e netos, contar para eles, muitas e repetidas vezes, algo comum aos idosos cuja memória o passar dos anos vai distorcendo, as experiências vividas pelo vovô.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 15/02/2022
Reeditado em 15/02/2022
Código do texto: T7453140
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