Estranho

Entrei na sala e vi nossa foto no lugar onde está há alguns anos – o porta retrato branco com a palavra “Família”, eu sorrindo na minha formatura do Ensino Médio e ele ao meu lado, parado, olhando para a câmera. É estranho dizer “ele” e não nós. É estranho demais não poder mais dizer nada que ele vá ouvir, não poder escrever uma carta ou uma declaração pública da qual ele vá realmente ficar sabendo. É estranho não poder mais entregar fotos, chocolate, caneca ou qualquer desses presentes que damos aos nossos avós. É estranho ter a sala vazia, a casa vazia, o sofá sem ninguém assistindo filmes antigos, sermões clássicos e testemunhos sobrenaturais. É estranho não poder contar sobre as conquistas e mais estranho ainda não ter palavras de afirmação quando as coisas dão errado. É estranho não ter onde passar antes de ir pra casa e não ter com quem me preocupar “tanto assim”. Tem sido estranho.

O mais estranho é notar o óbvio depois que os créditos rolaram e o “The End” em letras clássicas, como os filmes do Mazzaropi que ele gostava, fez meu coração parar por alguns instantes – o coração dele parou. Foi o que a médica me disse no telefone depois de uma explicação quilométrica que esqueci no instante em que ouvi. É inacreditável. Poucas pessoas tem a sorte de ter um avô-amigo, eu tive um amigo que por benção divina era meu avô. Nos dias em que estive doente, ganhei suco de laranja e uma visita – mesmo com a dificuldade de andar – todos os dias, além das orações. Recebi perguntas inusitadas a cada encontro, histórias fantásticas e ensinamentos de uma vida. Retribui isso assinando papéis de hospital, resolvendo coisas e sendo a única e última pessoa da família a poder vê-lo em tempos de Covid e internações no CTI. Retribui com teimosia e uma última oração.

Tem pessoas que dizem que ter a chance de se despedir ameniza as coisas: eu discordo. Nesse caso, eu discordo. Eu fui a última pessoa a poder visitá-lo e a última para quem ele afirmou que estava partindo: e eu disse que não estava não, para ele parar de ser pessimista e que estaríamos em casa no dia seguinte. Fui teimosa. Ele me chamaria de persistente, diria que eu não desisto das coisas, que eu sou esforçada, que isso é uma prova da minha fé e que por isso eu tenho futuro. Na verdade, eu sempre tive muito medo e aprendi a lidar com ele sendo persistente. Os médicos já estavam, mesmo, para liberar a alta. Eu tinha razões críveis para “bater o pé”. Eu tinha razões sobrenaturais para "bater o pé" - Deus cura. Então, eu orei com o meu avô. No momento em que eu fazia isso, senti alguém entrar no quarto – a mesma Presença que meu avô conhece (acabei de escrever o verbo no presente, é estranho, mas não vou mudar) e que pelo testemunho dele, eu conheço desde pequena – e então eu confiei. Ficaria tudo bem. Talvez não no meu conceito, mas ficaria. A Pessoa mais importante de todo o mundo para ele estava lá e permaneceria mesmo quando eu não pudesse permanecer. Faria o que eu não posso fazer. Cuidaria do que eu não posso cuidar. Protegeria o que eu não posso proteger. De fato, Ele fez isso.

Na manhã seguinte liguei para o hospital às 8:51h perguntando da alta. Às 9h a médica me retornou dando a notícia do falecimento. Falecimento – uma palavra feia e indigna de um homem tão honrado. Meu avô tinha morrido às 8:50h. Meu adeus foi “não vai embora, não, pode parar que ninguém vai morrer aqui”. Agora eu queria ter dito adeus. Queria ter pedido um conselho. Queria não ter sido teimosa. Queria ter acreditado no que lá no fundo, eu soube. Queria estar pronta o suficiente para escrever uma crônica bem construída, um memorial intenso com mil lições de vida e uma narrativa épica com as minhas histórias favoritas. Mas no fim das contas, é isso mesmo: é estranho. Vai continuar sendo.