AS PALAVRAS CRUZADAS E O VENTO
O vento forte entoa uma canção triste quando se esgueira sutilmente por entre as frestas da janela do apartamento onde moro, no quinto andar. Contudo, muito mais do que música lúgubre, o som parece algo assim como um interminável lamento que ecoa angustiado por meu ouvidos desatentos, suplantando o limiar de minha alma. E dardeja incontido em derredor eivado de ansiedade, lambregando todo o meu ser, impulsionando-o a contorcer-se, a inquietar-se, a obedecer ao desejo de fechar por completo a janela para impedi-lo de uivar.
No entanto, estou entretido com as palavras cruzadas de nível difícil e não julgo importante sair da concentração para um embate insensato com o vento. Seria deveras inglório abandonar o emaranhado labirinto mental em que me encontro para ato tão prosaico quanto me importar com a amargura do vento. Que ele grite, clame, se esgoele e rasgue o silêncio em que eu deveria estar, que ele morra engasgado com suas lágrimas ou reverbere incansavelmente pelas paredes, portas e janelas da vizinhança, seu estado de lastimável desalento.
Concentro-me no desafio a que me proponho, ou pelo menos tento, debulhando meus neurônios com vistas a descobrir as palavras certas para preencher os cruzamentos vazios que riem de meu mim ante meus olhos, indiferente portanto ao grasnar do vento e seu choro irritante. Lá embaixo, imagino, as folhas farfalham agarradas aos galhos que dançam sem querer ao som lamuriante desse sopro doloroso, e provavelmente os filhotes das aves, em seus ninhos escondidos, tremem de medo sem compreender o por quê do tumulto provocando solavancos nos ramos da árvore onde nasceram.
Em dado momento, arrasado por não lograr completar o enigma das cruzadas que me insultam e riem de mim com sua complexidade, pulo repentinamente do sofá, aborrecido e frustrado, correndo desabalado para vedar a janela com rispidez. Antes, porém, tive essa leve impressão, penso ter escutado uma risadinha irônica do vento, que, mesmo no auge de sua tristeza, roubou um segundo de suas lágrimas para rir de minha incompetência na tentativa de vencer as palavras cruzadas. Cabisbaixo, pensei: melhor ler Machado de Assis.