VENTOS !!! VENTANIAS !!!


      PEQUENAS CRÔNICAS DO COTIDIANO

Dona Izaura, minha avó materna, me paparicava.Aliás, paparicava a todos os meus primos e primas que não eram poucos.
Alegria geral era "dar um chego" na casa de vó Izaura.
Como fui criado sem muitas regalias, apesar de ser filho único, uma escapadela à casa da vó era sempre um bom pretexto para escapar das muitas tarefas que me eram atribuidas.
Assim, varrer terreiros, capinar quintal ou abastecer o paiol com lenha picada ficavam no esquecimento - ao menos por umas horas,um dia, enfim...
O tempo passa - e como passa - mas os meninos que nos habitam não nos dão trégua.
No you tube "Abba" diviniza-se uma vez mais neste início de tarde, com a canção "Andante andante", uma das minhas preferidas.
Viajo enquanto a ouço.
Domingo de calor, aquele silêncio que costuma imperar depois do almoço.
Minha cara na janela a espiar o nada.
O portão da frente aberto a espera de meu filho que foi levar uns agradinhos na casa de amigos, a cara metade em repouso, meu bairro esparramado na pasmaceira habitual, um cachorro cruzando a rua...
Ele pára instintivamente, aparenta um desejo de adentrar pelo portão escancarado.Em seus olhos o brilho da curiosidade de quem pensa encontar um paraíso além da rampa que dá para o abrigo.
Depois desiste...Rasga as pedras da rua com as patas, rega o poste e toma o rumo do desconhecido.
Altivo, cruza o asfalto e a tarde de domingo lhe pertence agora, de fato e por direito.
[ "Abba"... me enlevando ]
Sou neste instante, um "Andante andante" em divagações.
Uma rajada de vento refresca-me os pensamentos e uma breve sensação de ternura parece-me vir embarcada nesta brisa leve.
[ É o mesmo vento que experimentava na casa de vó Izaura! penso com meus botões. Aquele que insistia em fechar uma das folhas da janela de madeira, diante da qual dona Izaura pilotava sua singela maquininha de costura - daquelas que precisavam de uma mesa para apara-las ]
Uma saudade doce percorreu-me a boca e por instantes senti o gosto das laranjas saboreadas naquela janela que abria-se para um mundo que eu sonhava ser o melhor dos mundos.
O tecido xadrez revirado em todas as posições, as mãos acentando o pano , conduzindo os caminhos que fio e agulha deveriam percorrer, depois...Uma camisa quase pronta ! Seria presente para algum dos netos ?
Um olhar distante e pensativo além da janela entreaberta, e a boa velhinha juntava-se a mim nos devaneios de novos e coloridos dias.
Depois ... Um breve suspiro, uma ajeitada no coque e no avental e a mansidão da voz convidando-me para o café das tres.
Uma singeleza cativante e nós dois, feitos majestades, ladeando a mesa enorme.Um galo cantava lá fora, "Tózinho" latia no terreiro e as vaquinhas mugiam no potreiro entre uma ruminada e outra.
O espinhento pé de cactos num canto do terreno e açucenas colorindo o entorno da cerca de ripas.
O vento lambendo a tarde, insistindo em fechar metade da janela...
Depois o meu retorno pra casa.
Os carreirinhos de minha meninice, as poucas casas aqui e acolá.
A bronca na chegada:
-O que tanto faz na casa da vó, píá de bosta ? O que tem por lá que não encontras aqui ? Dizia-me mamãe com ares de enciumada. Ao que eu prontamente respondia:
-VENTO !!! VENTANIAS !!!
Minha mãe :
O vento que passa por lá, não é o mesmo que passa por aqui.

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IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 13/02/2022
Código do texto: T7451365
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