Humanos

Somos máquinas avançadas. É interessante reparar na quantidade de coisas básicas que fazemos ao mesmo tempo. Ver, ouvir, cheirar, sentir na pele e na língua: os cinco sentidos. Respirar, andar, pensar. Coordenar os movimentos dos membros do corpo, os grandes. Controlar os movimentos das pequenas partes, como dedos e olhos. Falar, uma das habilidades mais incríveis e complexas do humano.

Somos capazes de fazer tudo isso ao mesmo tempo, em modo automático, sem consciência do montante de operações simultâneas sendo executadas. E acrescento ainda: pensar. O pensar não tem limites e difere das habilidades acima por ser abstrato em sua essência. Pode exigir pouco do usuário, como simplesmente pensar num desconforto ao caminhar; mas pode também ser saturador, como procurar a solução de um grande problema... ou pensar na lista do supermercado.

A lista do supermercado tem poderes mágicos. Estamos lá, empurrando um carrinho de compras, todas as habilidades básicas operantes. A mente, no entanto, está em outro lugar. Está em casa, varrendo de lá pra cá em busca do que tem e do que não tem. Faz cálculos, planeja contingentes. Viramos zumbis, controlados de casa, empurrando carrinhos. É normal.

Há pouco estava nessa situação quando, também normal, virei a esquina de uma prateleira e topei com um conhecido. Desencadeou-se em mim a seguinte corrente de eventos: primeiro retornar a mim, suspensão do devaneio, estou de volta ao supermercado. Depois, ativar o comando “reconhecer rosto conhecido (usando máscara)”. Em seguida os comandos “reagir” e “interagir”. Às vezes esse processo é rápido como voltar à superfície de uma piscina rasa. Outras vezes é como despertar no tempo mais difícil do sono: parece que o corpo não reconquista todas as partes ao mesmo tempo, pelo contrário, arrasta um por um seus setores de volta à operação.

As habilidades básicas temos treinado desde que nascemos. Por serem tão vitais a ponto de serem indispensáveis a um recém nascido, hoje mal nos apercebemos delas. Mover-se, respirar, sentir, olhar. Mas o corpo também faz outras coisas, processos de fundo, das quais nem sabemos. O cérebro sempre está a enviar suas ordens para os órgãos internos e músculos involuntários. Estes, por sua vez, estão sempre a fazer seu trabalho e a reportar sua situação de volta ao cérebro. O cérebro nunca para, é um computador em contínuo funcionamento.

As habilidades do corpo não se esgotam aqui. Não vou falar sobre criatividade e grandes feitos motores. Agora estou pensando no crescimento e na reprodução. Alguém poderia se maravilhar, ao primeiro se dar, com a ideia de que somos máquinas autorreplicantes. Justo espanto. Seria como se, tempos imemoriais, duas delas fossem postas a sós com as condições suficientes e necessárias e, tempos depois, tivessem gerado cópias semelhantes em quantidade para povoar o planeta inteiro. Sozinhas, com as habilidades próprias, foram capazes de fazer isso. Os filhos ainda crescem em tamanho, o que exige um trabalho de ordenação impecável para bem sucedido ser. Curam-se de doenças através do sistema de defesa imunológico, restabelecem-se de feridas através do poder de regeneração e cicatrização. Justo espanto!

Existem ideias, no meio científico entre ficção onírica e realidade ambicionada, sobre criação de robôs que podem gerar cópias de si. Amestrar-se desta tecnologia teria impactos gigantescos na área da saúde. Grupos destas pequenas entidades poderiam ajudar a reparar danos antes irreversíveis. Nessa área, hoje temos um vislumbre do possível ao usar a tecnologia das células tronco – feito grandíssimo, não vá a palavra vislumbre o depreciar, mas é adequada por causa de todo o potencial ainda a ser explorado.

Mais para a ficção do que para a realidade atual está a ideia aplicada à exploração espacial. Num futuro desconhecido, pode ser possível povoar um mundo com replicantes a fim de prepara-lo para habitação humana. Ou, estratégia clássica, ir saltando de mundo em mundo com replicantes exploradores em busca de um habitável. Cada mundo inabitável seria como um posto de parada para abastecimento e multiplicação. Fãs de ficção científica encontrarão vastas obras literárias sobre assuntos assim, além de textos técnicos. Basta fazer uma pesquisa sobre autorreplicantes e John von Neumann.

Alguns sonhadores, não tiro-lhes mérito algum, estudam a hipótese de sermos nós mesmos estes autorreplicantes. Mandados por alguém, será?

Comecei no supermercado e terminei no espaço. É assim que a mente parece se comportar quando se dedica ao poder do pensamento. Nisso tudo, engraçado ou não, interessante ou não, há de se concordar: somos, dentre todas as maravilhas da Existência, uma das (senão as) mais esplêndidas importâncias conhecidas.

Ainda não entendemos todo o poder de criação de um Universo que parte do pó e torna-se consciente de si mesmo – sentença que não obriga nem desonera a existência de um Criador, que fique em nota. Mas entendemos o poder da admiração contemplativa do que se fez magnânimo - poder de inspirar, de imbuir paixão, invocar a vocação. Continuamos a aprender por construir o castelo do conhecimento, erguido por gerações e gerações de mentes que, um dia e antes de mais nada, aprenderam a ler e a escrever - o que lhes refinou a propriedade de suplantar a morte do conhecimento, elevando-o à condição de imortal.