ATÉ A ÚLTIMA HORA

As histórias são subprodutos do relacionamento, assim como as cascas são subproduto dos frutos da terra. Sem relacionamentos, sem histórias. Sem relacionamentos, sem vida em sociedade. As narrativas de uma comunidade crescem com o correr dos dias, dando nuances de aventura ao que começou como uma entrega de leite, de tragédia ao que iria ser apenas rotineiro, de novidade ao imprevisto que brota na curva dos dias.

Interagimos em sociedade, e é o quanto basta para nos tornar herdeiros de muitas histórias e protagonistas de outras tantas. O que é contado interliga as pessoas, tece e fia, fixa o ser ao lugar e pode ser conhecido pelo simples contato social. Mas há as histórias não contadas em praça pública, mal e mal confessadas aos cochichos perante uma alma confiável, guardadas com mais rigor do que as joias da coroa: os segredos.

Se as histórias desenham a face da comunidade, os segredos aprofundam os traços da efígie e, por ocultos que são, exercem seu poder sobre a lógica dos dias, de modo que, sem saber deles, parece-nos irracional certa atitude de fulano, enquanto que, se os sabemos, fulano é visto como um santo e sicrano, maldito seja, passa a carregar incontáveis culpas.

O lugar preferido para dar origem a um segredo é o seio da família. São pessoas que convivem todos os dias e se viram de pijama ou de paletó, assemelhadas no parentesco, próximas no afeto e no espaço, e ainda assim capazes de manter ocultos alguns fatos sobre si dos demais. Esta é a família normal: uma mesa cheia de histórias para contar e um cafezinho de segredos depois da refeição. Foi numa família dessas que cresceram Rosa e Rute, irmãs com dez meses de diferença no nascimento. Por 20 anos, viveram e cresceram juntas, partilhando o pão com mais dois irmãos e disputando a atenção dos pais, como toda criança.

Entre boletins escolares e bonecas razoavelmente escangalhadas, as pequenas já eram fontes de histórias para a família desde cedo. Ora era Rosa subindo pela escada do pai até o telhado, ora era Rute se escondendo no baú de noiva da mãe para pregar sustos aos pais. Passaram pela adolescência cultivando certa rivalidade, em cujo ponto mais alto instalaram tranca com cadeado nos respectivos guarda-roupas. Os irmãos mais velhos, com dez anos de diferença, se divertiam com a animosidade, ao contrário dos pais que erguiam as mãos ao céu em desespero.

Mas, assim que entraram no mercado de trabalho, o rugido profundo e feroz do mundo guiou-as de volta aos braços uma da outra, em proteção mútua e apoio recíproco. Tornaram-se inseparáveis, tinham os mesmos amigos e tentavam encontrar emprego onde pudessem ser admitidas juntas. Houve mesmo uma fase em que as histórias de Rosa eram as histórias de Rute, de tão identificadas que estavam uma com a outra.

Fatalmente viria algo que as diferenciasse, pois não é da natureza duas pessoas viverem a mesma vida sem serem casadas. E o que as diferenciou tinha um nome: Geraldo. Rute se emancipou aos poucos de Rosa. Rosa começou a viver suas histórias sem Rute. Tudo previsível e indolor. Em três anos, Rute se via no papel de esposa, frequentando a casa da mãe aos domingos, e dando à irmã preferida a honra de ser madrinha dos dois filhos do casal.

As crianças eram a alegria da tia Rosa. De tão apaixonada pelo seu papel de tia, não só dos filhos de Rute como também dos dois irmãos mais velhos, fez dele um destino e nunca se casou. Era instada e interrogada sobre seus motivos, mas sempre dizia que estava bem assim. Os anos a tornaram mais quieta, com uma certa tendência à reclusão, vencendo o caminho até a aposentadoria ano após ano, pacientemente, passando as tardes de domingo com as amigas numa rodinha de crochês. Ainda havia histórias, mas cada vez mais tendiam a se repetir, de forma que um confortável silêncio passou a cercar a figura de Rosa como uma aura de santa. Era uma pessoa mansa destinada a um longo e manso crepúsculo.

Os anos passaram, com sua carga de alegrias e tristezas, despedidas e recomeços. Os sobrinhos, todos casados, mal e mal se lembravam da sua discreta tia Rosa, a não ser nos casamentos e funerais, talvez nas festas de final de ano. Havia afeto, e havia histórias partilhadas, mas a correria do mundo afastava os mais jovens dos já sossegados.

E chegou o dia da despedida final. Uma Rute envelhecida e em lágrimas segurava a mão da irmã predileta e, com uma expressão séria e concentrada, ouvia, ao pé da orelha, o único segredo de Rosa: amara Geraldo a vida inteira e não se passara um só dia, desde que o conhecera, que não sonhasse em ser esposa dele. Perplexa, a irmã perguntou por que, após décadas de silêncio, resolvia confessar justo agora, no seu leito de morte. Com um último sorriso no rosto, Rosa, a indomável Rosa, respondeu: para não ter mais segredos entre nós, minha irmã.

E morreu.

Tangará da Serra, 12/02/2022.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 12/02/2022
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