Minha terra minha gente( ...a despedida)

Estávamos no fim, em 1975, sem saber se um dia poderíamos voltar para as nossas casas, mas conscientes do que estava acontecendo ali; com angústia , vencidos e cansados, nos despedindo de Moçâmedes e dizendo adeus às nossas vidas perto da independência, portanto, últimos dias de Angola.

Foram dias de adeus, antes de passar a chave na porta e fechar a casa. Para além de mim e meu pai apenas mais duas ou três pessoas na casa onde eu cresci , onde nós vivemos por tantos anos felizes.

Dias para esquecer...Não olhávamos mais nos olhos uns dos outros e nem nossos cães deixavam o canil nos fundos do quintal e de onde não mais saiam. Dormiam dia e noite.

Meu pai andava tenso, quase sem brilho nos olhos, mas realizando o que precisava ser feito.Todos nós reuníamos ali as forças necessárias para cuidarmos do que tinha alguma importância, ainda . Queríamos embarcar algumas poucas coisas num navio de carga enviado pelo governo português acabado de ancorar na cidade. Apesar de abalado e sem saber bem como agir naquela situação com a cidade quase vazia e sem conhecermos ninguém pra realizar qualquer tipo de tarefa, mas foi ele que encontrou alguém que se dispôs a fazer 2 caixotes de madeira. Lá entrou meu Pai no quintal certa manhã ao volante de um tipo de “carrinha” emprestada com esses dois caixotes enormes. O que precisávamos ,afinal, e num tamanho suficiente a guardar alguns poucos objetos: escolhemos os melhores valores de decoração da casa e quadros a maioria deles de autoria de um pintor amigo da familia. Não éramos uma família rica mas com uma vida de certo conforto e tínhamos, portanto coisas com algum valor. Mas tínhamos de fazer escolhas.Tornava-se difícil mas...Mãos à obra. Coube a mim a decisão , talvez a mais difícil naquele momento, sobre um dos objetos por ser a peça( ou uma das ), favoritas da minha Mãe eterna apaixonada por arte antiga. Entrei na sala e logo olhei para uma pequena prateleira na parede onde estava um jarro em vidro- casquinha, jateado a branco e dourado numa espécie de areia fina.

“O que vou fazer “?- pensei eu. “Este jarro pode quebrar só com um sopro e não vai chegar inteiro a Portugal dentro de um caixote cheio de outras tantas coisas a balançar num navio” Não consegui tirá-lo da prateleira onde estava. Lá ficou. Com certeza minha mãe entenderia .Não sei se agi corretamente, mas naquele momento foi o que senti em meio a tudo aquilo e à confusão que estavam as nossas vidas.A jarra lá ficou no lugar dela, e sem poeira. Tive o cuidado de deixá-la limpa.

Um dia meu pai acordou agitado,logo após o embarque dos caixotes. De semblante mais carregado que nos dias anteriores pediu-me que o acompanhasse ao escritório, no centro da cidade, para fechar as portas e fazer algo.Talvez pegar o diploma- pensei eu. Nada mais poderíamos levar para além daqueles dois caixotes já colocado no navio de carga . Tanto lá no escritório quanto na nossa casa haviam centenas e centenas de livros, a grande paixão do meu pai , a biblioteca que nós aprendemos a amar, também, mas tudo ficaria. Tínhamos a maior biblioteca particular da cidade para alegria nossa de todos os nossos amigos dos 8 aos 80.

Da nossa casa apenas pegamos uma Bíblia encapada com um couro branco. Meu pai pediu-me que a pegasse na estante.Estou a vê-la,e a ver-nos naquele preciso momento.

E saímos, fomos calados, até ao escritório .Não me atrevia a falar de algo que não me saía do pensamento mas que sabia estar a destruí-lo: a despedida do seu funcionário/secretário negro , companheiro de toda uma vida profissional e a quem tratava como amigo.

Mas assim tinha de ser. Ali estava um “rapaz”, o “contino “já de cabelos brancos e que nos esperava à porta, quando chegamos.

-Sr Doutor, estou aqui. Porquê o Sr Dr não veio trabalhar estes dias?- perguntou ele

-Ó rapaz, estive me preparando.

- Para quê?

Vi meu pai gaguejar, sem lhe responder diretamente.

-“Desculpa-me . Não posso levar-te comigo.Tens família.

-“Sim senhor”.

E se abraçaram. Não sei por quanto tempo nem o que mais aconteceu mas lembro-me que não escutei nem uma única palavra. Meu pai pôs-lhe as chaves nas mãos e saímos.

O "rapaz", seu amigo por tantos, tantos anos, entendeu o que teria de fazer.

Lana

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Teresa S Carneiro
Enviado por Teresa S Carneiro em 12/02/2022
Reeditado em 12/02/2022
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