Mudança de paradigma
A primeira vez que um veterinário apareceu na fazenda do meu avô foi um reboliço. Para começar, a dificuldade em pronunciar a palavra “veterinário” e, mais ainda, entender o que isso significava. No fim, virou “o doutor de bicho” e ficou por isso mesmo. O sofisticado homem era olhado com desconfiança. Tinha gente que no dia marcado para a visita do ilustre doutor desaparecia nas baixadas, outros vestiam as melhores roupas. A meninada subia nas tábuas do curral só para observar de longe os vidros, as seringas e admirar o jeitão do especialista em saúde animal. Eu mesmo quis saber do meu avô se aquela presença era de fato necessária e ele confirmou, dizendo que era preciso melhorar o rebanho e garantir melhores condições de trabalho para todos os envolvidos na lida diária da fazenda.
Melhoria da produtividade, sanidade do rebanho e adequação da atividade às novas regras, que mais cedo ou mais tarde viriam, eram imprescindíveis, segundo meu avô. Vacinas, antibióticos, controle de parasitas, métodos de manejo racionais eram tendências que não podiam ser ignoradas. Mas o choque cultural inicial foi grande, eu me lembro.
As práticas tradicionais começavam na hora do nascimento da bezerrada. Após o parto, no piquete, mãe e filho eram conduzidos ao curral. Se a vaca era brava ou novilha de primeira parição, vinha debaixo de muita pancadaria; dizia-se que ela tinha ciúmes da cria. Uma vez apartados, o pobre filhote era jogado no chão e recebia uma boa quantidade de desinfetante no umbigo. Em seguida, era levado para um lugar onde já estavam os outros bezerros, que só voltavam a ter contato com a mãe na manhã do dia seguinte. O colostro era destinado à porcada. Dias depois, a língua era raspada a canivete para eliminar uma enfermidade denominada “sapinho”. Os animais acometidos por ela não conseguiam mamar, aparentavam fraqueza, levando muitos à morte. Se acaso surgisse uma bicheira, o animal era derrubado e tratado onde estivesse, geralmente retirando os parasitas com o canivete de sempre e enchendo o buraco, a ferida, com tecido velho e, não raro, esterco seco. É claro que o Dr. Veterinário condenava essas práticas e apresentava outras soluções. Incomodava-me observar que, às vezes, bastava ele virar as costas para tudo voltar a ser como antes.
Lembranças boas eu tenho dos dias de vacinação do rebanho. Meu avô gostava de começar cedo, zeloso da caixa de isopor cheia de frascos e gelo. Todo o gado passava no curral, oportunidade para conferências e apartações. A vacinação passou a ser obrigatória, mas o que deixava meu avô atônito era saber que alguns fazendeiros recusavam-se a vacinar. Isso foi nos anos 1960 e 1970. Hoje, imagino, todos compreendem a importância das vacinas e da ciência, afinal, o mundo mudou. Ou não?