Arte e Poça

A cidade depois da chuva tende a construir uma das coisas mais ordinárias do cotidiano do ser humano: as poças de água - em especial, aquelas que ficam entre as calçadas altas e as faixas de pedestre, onde ônibus e carros passam e jorram água nos transeuntes. Em minhas breves décadas de vida, já presenciei motoristas molhando pessoas de propósito e já fui eu mesma o alvo, acidental, acredito, de um ônibus, tarde da noite, na volta da faculdade. Poucas coisas são mais revoltantes a um cidadão que tomar banho de água de poça. Mas não é esse o ponto aqui.

Certo dia, estava eu indo à Farmácia e bem no lugar de travessia havia um minilago que, para ultrapassar, seria preciso literalmente saltar e torcer para que houvesse distância suficiente. A água estava tão suja e tão escura que se eu não fosse uma cidadã acostumada facilmente acreditaria que surgira ali um pequeno abismo e a poça era, na verdade, uma entrada para outro mundo.

Enquanto o sinal não abria e eu calculava as distâncias, comecei a pensar em como não podia ver a rua naquele perímetro de água e então, quase perdi a hora de atravessar encarando a água suja. Não houveram reflexões filosóficas, analogias bem construídas ou metáforas, alegorias brilhantes para situações da vida. Há uma coisa que carreguei, certamente de maneira involuntária, da infância até aqui: o hábito de criar histórias.

Naquele domingo a noite a poça de água suja, diante dos meus olhos, se tornou um conto em que um menino cai no abismo ao atravessar a rua – tudo porque ele decidiu corajosamente pisar ao invés de pular – e então é engolido por um mundo subjugado, onde bêbados, dependentes químicos, andarilhos, idosos e pessoas aleatórias vivem sem saber como voltar. A regra para retornar do mundo sombrio era só uma: alguém passar por ali te procurando. Se isso acontecesse, a pessoa voltava ao mundo exterior e na maioria absoluta das vezes, não se lembrava do que houve ou esquecia muito rápido.

Domingo, perto das 18h, indo à farmácia para voltar à Igreja, assisti a um curta-metragem no meu cérebro: Galochas, um conto que acabei escrevendo mesmo. Muito menos colorido e talvez bem menos brilhante que quando era uma menina – sim, com certeza – mas ainda incrível. Não tinha problemas nem preocupações e nem muito de pressão. A imaginação é uma benção dada aos pequeninos que os artistas tem a sorte de ver perpetuada em sua identidade.

Na verdade, havia uma problemática explícita na minha história: a questão dos perdidos, ignorados, a sociedade que subjuga e lança ao esquecimento, seus valores invertidos e sua vida pouco aproveitável. Mas inseri-la foi tão natural que só me dei conta quando já havia feito e assim, chego a conclusão de que a arte é um protesto para os outros e um certo refúgio para o artista.

Se faz produto sob encomenda, mas não arte. Arte é uma coisa diferente. Arte é aquela coisa que toma os seus olhos tanto no dia comum quanto nas horas dedicadas a ela, é uma coisa que vem sabe Deus de onde e que expõe tanto seu criador que na maioria das vezes, gera vergonha da exposição. Quando afirmada, gera o maior dos orgulhos – antecedido pelo frio na barriga mais único do mundo. É o paradoxo da segurança e do risco. É mais que algo a se fazer, é uma identidade inata. Ninguém escolhe, mas é. Pode fingir ser, mas só quem nasceu sendo, é. Pode achar que não é, mas é. Pode não exercer como a Beyoncé ou fazer sucesso como Clarice – mas ainda assim, é. Mesmo que os pés estejam longe da pista, as mãos longe do papel, a voz aquietada e deixada em stand-by. Ainda é. E vai ser, para sempre.

Por fim: minhas intenções aqui estão um pouco longe de investigar ceticismo, converter os realistas e fazer apologia à vida em Nárnia. Se você é, precisa assumir isso o mais rápido possível e não se forçar a ter uma lente comum sob o preço de deixar ir o extraordinário. Você não é comum – mas também não é uma classe superior. Se você já assumiu sua lente, vim te lembrar de limpá-la: não é produto, é identidade.

Até a próxima poça!

Com amor,

Camila.