VENCI O VAZIO
Na verdade, eu nem queria mesmo escrever nada, minha alma está vazia de ideias e assunto, nenhum tema areja meus pensamentos, há uma espaçosa cratera emoldurando-me o coração desnorteado. Mas como conter o fluxo de poeira contaminada de ansiedade eivada de arrazoados desconexos perturbando meus olhos e sacudindo meus pensamentos? Uma moça linda, usando saia curtíssima e exibindo coxas belíssimas, conversa com meus olhos, a buzina da moto destrambelhada desperta até as estátuas de tão alta ao passar logo adiante, um menino tomando sorvete avidamente espirra quase sobre mim, assustando-me, dois pombos atrevidos defecam bem próximo de meu tênis novo, a brisa calma embala as plantas, o crepúsculo se aproxima... tudo conspira para que eu faça anotações bobas e despretensiosas na tela em branco de meu celular. Como não escrever então?
A vida borbulha ao meu lado e parece exigir atenção especial, mimada que é. Quem ousaria desafia-la? Não eu decerto, longe de mim enfrenta-la desarmado de ensejos. Cá, portanto, me vejo rabiscando, anotando tudo, aqui e ali apagando incoerências, corrigindo incongruências, obedecendo cegamente aos impulsos externos. Pois não sou somente vetor do fervilhar vivenciado pelo burburinho humano e seus assemelhados? Não são as coisas, os fatos e os acontecimentos o cérebro e as mãos do escritor? Portanto, não me posso furtar aos anelos das palavras, impossível fechar o olhar à existência, ao desenrolr do ruge-ruge. Difícil recuar ante tal tentação. Ainda que nem cogite em elucubrar meus rascunhos em dado momento, mesmo que relute em dar asas à imaginação, embora eu volte as costas às amarras do imaginável, lá me vem a explosão de qualquer coisa moldando o embalo de meus delírios literários. Logo, escrevo.
É quando, por conseguinte, me acalmo, vai-se-me aquela sensação de niilismo, desaparecem quaisquer traços de angústia ou tristeza, vence-me o estilo , o jeito e as particularidades, deixo de ser oco e me vejo preenchido. Escrever é o braço direito de meu espírito.