Assistia televisão na vizinha

Cheguei do interior para morar em Fortaleza no ano de 1962, ou seja, eu tinha dois anos de idade. Éramos 4: minha mãe, meu pai, meus dois irmãos e eu, o caçula. Nesse mesmo ano nasceu meu terceiro irmão e em 1963 nasceu o quarto e último. Éramos cinco!

Viemos do Curu para morar numa vila que era composta por 17 casas.

Quando tomei consciência de vida, lembro que nesta vila apenas duas das casas possuíam televisão, a casa da dona Rosa, esposa do seu Zequinha e do seu Justiniano, esposo da dona Lurdinha.

Seu Justiniano já era um senhor de idade avançada, aposentado da Marinha e, creio, foi da banda de música desta corporação. Aos finais de tarde, é isso o que dita minha pouca lembrança, ele costumava tocar sua Clarineta. Dentro do pouco repertório que ele executava, lembro de Cisne Branco e, é impressionante como ainda ouço aquele som e sinto que o velho Justiniano era invadido pela saudade de seu tempo de militar.

Enfim, ele era muito rígido, tinha 3 filhos e uma filha e, decididamente, não era lá que a gente podia assistir TV com tranquilidade e regularidade. Vez por outra, a gente se escorava na janela e ficava assistindo sua TV. No entanto, quando a meninada se agitava, as duas bandas da janela se fechavam na nossa cara sem nenhuma explicação ou “com licença”. Ô humilhação meu Deus do céu! kkkkkkk. Pense numas caras desconfiadas saindo de fininho, na verdade, às vezes muito puto, porque estava quase no fim do filme ou desenho. O putaquipariu interno gritava, mas, ficava “intalado” porque a gente tinha medo do “seu Píula” (esse era seu apelido e que por sinal, era preciso muita coragem para chamá-lo assim, pois ele virava uma fera!).

Nossa sorte, digo isso porque realmente a coisa era bem seleta, é que dona Rosa e seu Zequinha gostavam muito de nossos pais e, tínhamos carta branca para assistir televisão na sala, sentadinho no chão. Bastava chegar na porta, composta de duas metades, meter a cabeça e dizer as palavras mágicas:

_ Dona Rosa deixa eu entrar!

Rapidinho aquela senhora gentil verificava de quem se tratava, ia até a porta, abria o ferrolho, pedia para a “multidão” se afastar, e mandava a gente entrar. Às vezes era preciso vencer a inveja da galera que, vez por outra, ainda dava um tapa na cabeça da gente. Principalmente, quando o cabelo estava cortado com um corte tipo ilha, onde tinha cabelo em cima e o resto era todo pelado. (isso é outra história).

Pois bem, a gente entrava e sentava o mais perto da TV possível. Em geral, lembro da sala vazia só com as cadeiras de balanço do seu Zequinha e da dona Rosa. Ele era um senhor simpático, franzino, de pijama que, vez por outra, colocava um pé no assento da cadeira, agarrando a perna com as duas mãos. Dona Rosa era mais inquieta, de vez em quando entrava para fazer uma coisa e outra, ficando nesse senta e levanta o tempo todo.

Já passei muita vergonha naquela sala, em especial nos dias que eu tinha ido para a praia, pela manhã, com meus pais. Se não me engano, no domingo, eu ia assistir Disneylândia, cumprindo todo o ritual: pedia para entrar, levava uns tapas, entrava, sentava perto da TV e, beleza começava a assistir o programa.

Quando o sono batia, pegando o cabra “mariado” pelos mergulhos na praia, os olhos ainda vermelhos do sal, o bucho ainda chacoalhando de tanta água com sal bebida e misturada com o almoço ainda recente, não tinha pra ninguém, era uma luta dura para permanecer atento, era um sono infeliz da “bachadaégua”.

Uma técnica que eu usava para tentar me manter acordado, era esticar as pernas e colocar os dois braços para trás, no entanto, era aí que eu me lascava, para a alegria e mangação da galera da geral, que lotava a porta e a janela.

O diabo do sono vinha sem dizer nada, eu fechava os olhos e me sentia como se ainda estivesse tomando banho de mar, daí me acordava do susto e da zoação daqueles magotes de filhos de uma égua, já deitado na sala, pois os braços dobravam e eu não conseguia me segurar e ia a nocaute.

Eu levantava rápido, calado, como se nada tivesse acontecido. Por dentro, no entanto, a alma tentava se esconder de vergonha. Quando isso acontecia, tinha seu lado bom, pois por conta da vergonha passada, eu conseguia dominar o sono e assistia a Disneylândia todinha. Não posso deixar de citar Roberto Carlos em Emoções, nesses causos infância: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”

Pelo menos no bairro em que eu morava, sei que tem gente com muitas histórias como esta para contar. Por sinal, eu adoraria ler/ouvir, elas servem para valorizar nosso tempo de menino. Fica a provocação!

jrogeriobr
Enviado por jrogeriobr em 05/02/2022
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