CONTRASTE - NOVA VERSÃO

CONTRASTE por Noélia Nobre

Naquela tarde o céu estava escurecido com a chuva avisando que chegaria em breve, cheguei até a pequena passagem que constava no documento, mas ao ver que a entrada de automóvel seria impossível, estacionei na rua principal para ir a pé a procura do endereço.

Com os cabelos presos em rabo de cavalo, blusa de malha preta, calça jeans, sandálias de salto baixo, óculos junto a blusa, crachá no pescoço, prancheta na mão, uma caneta esferográfica azul e vinte reais no bolso, eu estava pronta para iniciar os trabalhos vespertinos.

Respirei fundo, mais uma missão a cumprir. Nestas horas, só temos Deus para nos acompanhar.

Adentrei naquele lugar feio, estranho, sujo e estreito, pedindo a benção dos céus para que tudo corresse bem.

No meu semblante, uma imagem calma e sem reação aparente, uma cara de paisagem. No peito um aperto de quem já enfrentou por diversas vezes áreas adversas como aquela.

Obviamente, esses lugares não tem o mínimo saneamento básico, e a miséria se sobressai acima de tudo.

Lá residem pessoas boas e dignas, que em sua maioria, não tem escolha. Necessitam morar ali. E graças a elas, por diversos momentos, eu fui salva de situações perigosas.

No entanto, existem aquelas pessoas de má índole, que usam esses cantos até mesmo para se esconder mais facilmente. Gente sem sentimento, sem amor no coração. Que só cultiva ódio, ganância e destruição.

Entrei enfim. Logo no início da passagem, um homem sem camisa e suando, descarregava latas de cerveja de um carrinho de madeira e colocava dentro de um pequeno imóvel, no qual na frente, em cima de uma grade enferrujada, estava escrito: Bar da Gelada.

As letras eram toscas e a tinta estava largando. Não existia um bar realmente, só uma janela com grade descascando, por onde se entregaria o produto e um portão do lado. Desde ali, a sujeira na rua já começava a se destacar.

O homem de feições rudes, parou por uns segundos, me olhou de cima abaixo rapidamente, e sem nenhuma reação aparente, continuou o seu serviço, enquanto eu continuava a caminhar, olhando para baixo, desviando das poças de lama, do lixo jogado e das fezes de animais. Ao mesmo tempo que prestava atenção na movimentação dos transeuntes, para me precaver. Pois, nunca sabemos o que pode acontecer.

A cada passo, olhares que te interrogam, que se perguntam, o que você estaria fazendo ali. Alguns demonstram até um certo desprezo.

Logo a frente, mais um suposto bar. Esse tinha umas mesinhas de ferro pintadas e já bem gastas pelo tempo e uso, encostadas nas paredes dos dois lados da estreita passagem, dificultando inclusive a minha caminhada.

As mesas com poucas cadeiras, também de ferro e com propaganda de cerveja já apagada e gasta, estavam todas ocupadas por pessoas que bebericavam aquelas latas de cerveja barata, enquanto o calor, as faziam suar em bicas, mesmo com o tempo se preparando para uma chuva.

Apesar de tudo, eu tinha que continuar a minha busca. Olhava para as paredes, procurando por números, que na maioria das vezes nem existiam. E quando encontrava algum, era disperso e aleatório.

Quanto mais eu andava, mais a passagem parecia ir se fechando a minha frente.

Nas 5 mesas do bar: em uma se podia ver um senhor de idade de camisa entreaberta, bermuda e um chapéu de palha na cabeça e uns óculos de armação de tartaruga, grosso e antigo. O homem estava sozinho e tranquilamente bebia sua cerveja, sem ligar para o que acontecia a sua volta.

Na mesa da frente, mais dois homens, também mal vestidos, sendo um sem camisa; só levavam as bebidas a boca e me olhavam de forma curiosa. Barbas por fazer e cabelos emaranhados, mãos grossas e encardidas.

O mau cheiro que exalavam de seus corpos era uma mistura de suor, sujeira e álcool barato.

Em outra mesa, tinham duas mulheres. Uma delas trajava uma bermuda azul céu que ia até os joelhos e uma blusa estampada bem colorida. Tinha os cabelos lisos e castanhos aloirados partidos de lado, óculos no rosto e chinelas tipo havaianas. As pernas a mostra, estavam cheias de varizes densas e de cores fortes.

A outra mulher estava com os cabelos encaracolados presos por uma liga na parte posterior da cabeça, um vestido estampado de flores azuis e também estava de alpargatas. As peles eram morenas, queimadas do sol. Bastante ressecadas.

Ainda do outro lado, um casal dividia uma lata de cerveja, mas sem conversa. O homem olhava fixo para a lata e ela escrevia em seu celular, parecendo bastante ocupada.

Enfim, na última mesa, dois homens de meia idade, discutiam sobre algo, bebericavam a cerveja e tragavam cigarros fedorentos.

A mulher de bermuda azul, que me acompanhava desde que eu entrara na passagem, se dirigiu a mim, quando passei próximo a ela. Com a voz rouca, me indagou de forma curiosa sobre quem eu estaria buscando.

Como a numeração dos imóveis era desordenada e repetida ou não tinha numeração, eu disse o número e o nome da pessoa.

A mulher de pronto, reconheceu o nome. E disse que eu fosse até o final do beco, entrasse em outro beco à direita e lá no final eu encontraria outro beco e no fundo, o imóvel que eu estava a procura.

Agradeci e fui caminhando conforme as orientações dela. Só em saber que eu ainda deveria adentrar mais e mais naquele lugar, o meu coração apertava. E a cada novo beco, o meu olhar se tornava mais atento.

Fora o medo, de ser assaltada ou abordada, a cada passo que eu dava, o horror do lixo espalhado naquele lugar, dos animais pelos cantos, magros, com as costelas a mostra e maltratados e a visão de esgotos a céu aberto mexiam intimamente comigo.

Peças de televisão, geladeira e sofás jogados em um canto, formava uma grande montanha de lixo, provavelmente com ratos e outros animais peçonhentos junto.

As casas com portas que eram madeira de demolição encostadas e janelas feitas com restos de madeira, papelão e plásticos estavam por todas as partes.

E no lixo que exalava um odor mais forte, urubus desciam para se banquetear.

Pessoas me olhavam pelas suas janelas entreabertas ou sentadas em frente as suas biroscas.

Desviando de todos esses empecilhos, finalmente cheguei ao imóvel que eu estava a procurar. Ele não tinha um número, mas era ele, de acordo com as instruções da mulher do bar. Um barraco com pedaços de madeira presos aleatoriamente, sem seguir nenhuma norma conhecida de construção. Só amontoados uns sobre os outros e com pregos grandes e aparecendo. Não existia pintura, mas em alguns pedaços, podíamos ver um pouco de tinta branca ou amarela.

O piso era de barro batido, e da entrada só se avistava duas cadeiras velhas e gastas, uma mesa pequena ao fundo e um fogão antigo, com uma panela suja e amassada em cima dele.

Perguntei ao senhor encostado na porta se a pessoa residia lá, e ele balançando afirmativamente com a cabeça, gritou pela mulher.

Minutos depois, aquela senhora de corpo cadavérico, cabelos assanhados, um short jeans, uma blusa de malha amarrada e pés descalços veio me atender.

A mulher provavelmente era nova, mas aparentava estar velha e acabada. Com os olhos fundos e a pele oleosa.

Expliquei para ela do que se tratava e ela, só me olhava calmamente, talvez tentando compreender as minhas palavras. Eu tentava me expressar da forma mais simples possível.

Quando terminei de falar, perguntei se ela tinha alguma dúvida, ao que ela só balançou a cabeça em negativa. Entreguei o documento, ela assinou a minha via, e enfim, saí em retirada.

Enchi o peito de ar, e me preparei para refazer o percurso de volta para a rua principal e pegar o automóvel. Olhando ao redor, eu ainda conseguia ver os olhares sobre mim. Mas, não aparentavam que iriam me incomodar.

Ao sair daquele lugar, fiquei pensando, como era possível um ser humano habitar lugares como aquele, e que na verdade, são tão comuns em nosso País e em muitos outros países. Uma realidade triste e dolorida.

Cheguei no meu carro, e a chuva começou a cair forte, como se estivesse aguardando o meu retorno para iniciar. E naquele momento, eu agradeci por tudo que tenho e por sair bem dali. Orei ainda no meu íntimo, por aquelas pessoas que na sua maioria, nunca tiveram a chance de viver em um mundo melhor.

E devemos sempre agradecer por ter a oportunidade de poder desfrutar de uma existência digna.

No dia seguinte, o sol estava radiante, deveria estar fazendo um calor de uns 35 graus.

Entrei no automóvel e me dirigi para um condomínio bastante chique. Só para chegar até a portaria enfrentei uma fila de tamanho colossal.

Dois seguranças bem trajados e com prancheta e caneta em punho, iam de carro em carro pegando as identificações dos condutores e perguntando sobre o que tinham ido fazer no local, para onde iam e outras informações complementares.

Quando chegou na minha vez, expliquei tudo e mostrei a identificação. E ele me encaminhou para uma entrada, na qual eu falei por interfone com outro segurança e coloquei minha identificação na máquina para ser escaneada.

Depois, o segurança entrou em contato com a pessoa do imóvel, e finalmente a minha entrada foi liberada, e a cancela automática levantada.

As ruas do condomínio eram todas asfaltadas e com bastante arborização nas laterais. Árvores altas e esplendorosas e gramas bem cuidadas e arbustos para auxiliar no embelezamento.

As casas com projetos em linhas retas e assimétricas, enormes paredes de vidro canelado; portas de entrada enormes de madeira maciça, algumas trabalhadas e com maçanetas de metal. Uma elegância que se sobressai.

Belíssimos jardins monumentais que se espalhavam para todos os lados. Funcionários fardados fazendo a limpeza das vias. Pessoas bem trajadas, fazendo caminhadas pelas largas calçadas. Cães de raça passeando com seus condutores.

Ali, eu não me preocupava em olhar para trás. Não tinha o medo de ser abordada por ninguém ou assaltada. Uma tranquilidade alentar o nosso coração. Chegamos a pensar por uns segundos, que o mundo perfeito existe.

Finalmente, cheguei ao imóvel que eu estava procurando. Subi as escadarias de pedra cinza da frente, nas quais as laterais podiam se ver a fileira de arbustos que levavam até a porta principal.

Na minha frente, uma porta de madeira pivotante e um piso todo de granito, com janelas de vidro nas laterais.

Toquei a campainha de som melodioso, e alguns minutos depois uma jovem trajando um uniforme branco com detalhes verdes e sapatos brancos com meias, surgiu na porta.

Me apresentei e disse com que eu desejava falar.

Fui convidada a entrar e aguardar na sala. Enquanto eu esperava, olhei ao redor e tamanha beleza me encantou os olhos.

Estofado grande e confortável em forma de L e de cor neutra. Duas cadeiras transparentes com curvas e almofadas branco gelo. Uma mesinha de centro quadrada com a base de espelho e em cima de vidro, com um espaço ao meio com revistas e poucos enfeites glamourosos. O tapete felpudo e claro, mesinhas laterais com abajures de cristal. Tudo era de uma beleza sem igual.

Logo a senhora chegou. Uma mulher de estatura média, sandálias de salto alto, muitas joias, cabelos penteados, calça preta e blusa caqui. Bem maquiada, pele lisa, suave e brilhante. Muito educadamente, ela se dirigiu a mim, e eu expliquei de forma clara e direta. Ela agradeceu, me despedi, e ela pediu que a funcionária me levasse até a porta.

Sai daquele lugar, pensando em toda aquela riqueza e beleza sem fim. É como se aquele mundo fosse um lugar irrepreensível, sem defeitos.

Mas, o fato é que sabemos que nem tudo que reluz é ouro. E que em lugares assim, também existem pessoas de índole ruim.

Sem falar do egocentrismo, do ar de superioridade que muitos exalam.

Entrei no meu carro, e lembrei das imagens do dia anterior, os acontecimentos dos dois dias se chocavam em minha mente.

Nenhum daqueles dois mundos eram meus, e aqueles mundos se chocavam de uma forma inigualável.

O fato é que nenhum desses mundos é o ideal, e nem nunca será. Em um, se vê a extrema miséria, que só entende mesmo, quem consegue vivenciá-la, e nada tem de romântico. As pessoas vivem em locais insalubres e na miséria total, muitas vezes por falta de opção. Elas não têm condições de morar em um canto melhor. Ninguém é pobre porque deseja.

No belíssimo mundo da riqueza sem fim, também não acho o suficiente para ninguém ser totalmente feliz. Pois, aquelas pessoas tem posses materiais, mas será que elas sabem o que é compartilhar, dividir, ter alguém que te ame só pelo que você é?

Enfim, vidas tão distantes que às vezes nem conseguimos entender como podem existir tantos mundos em um só.

O no meio desses mundos, tem outros mundos, como o meu. E sou muito grata e feliz por viver nele. Não tenho dinheiro sobrando e nem carros ou mansões de luxo, mas, também, não vivo em um lugar que não tem nem esgoto ou água encanada.

Foi então, que dei um sorriso e ligando o carro, eu parti.

Noélia Alves Nobre
Enviado por Noélia Alves Nobre em 31/01/2022
Código do texto: T7441775
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