A PALAVRA OMITIDA

Não me perguntem por que decidi hoje falar sobre meus silêncios. Todos temos nossos mistérios, segredos e ocultações. Todos querem ser ignorados por detrás de suas máscaras. Entre quem nós nos mostramos e quem de nós mesmos desconhecemos habita um intervalo de inconfidências e de privacidades impenetráveis. Não sou, pois, diferente de ninguém, afinal também trago em mim um amontoado de desejos sem objetos, de falas que não buscam ouvidos e de palavras órfãs de línguas. Tenho cá meus sigilos e meus recessos, confesso. Nem o mais íntimo dos deuses conhece meus esconderijos. Camuflei-me tanto de véus que sequer eu mesmo muitas vezes me reconheço. Apenas sei que aquilo que geralmente falo não revela um décimo de quem sou. Quando murmuro minhas cobertas interioridades quem as ouve é a surdez das paredes do quarto onde finjo para os outros que durmo. Só o escuro das madrugadas ilumina meu Joaquim clandestino.

Mas como falar de quem nunca falo? Que palavras empregar na ausência do hábito de seus usos? Como irei, então, me desabitar se prefiro o abrigo aconchegante do interior restrito dos meus contidos cômodos? Não quero a zoeira do burburinho de outras vozes, nem o ruído estrangeiro de contrários passos que não sejam os meus. Eis, portanto, senhores e senhoras meu atual dilema: falar com a mudez silente e taciturna dos meus calados, pois de longe ou de perto ninguém é assim totalmente sincero.

Penso em utilizar-me da poesia, pois, como escrevia o poeta Paul Claudel, um "poema não é feito dessas letras que eu espeto como pregos, mas do branco que fica no papel". Logo, aqui estou: vestindo-me de versos e prosas, simulando-me de vocábulos e letras, enquanto meu avesso se desnuda no oposto do que escrevo. Escrevo para me reconciliar com o menino que no refúgio de minhas profundezas balbucia vocábulos que o adulto não expressa. Escrevendo interrompo-me das aparências e me revelo nas entrelinhas do texto, na pausa suave das vírgulas, no soluçar respirante dos espaçamentos das palavras, na cadência ondulante do ritmo das linhas, na supressão inconclusa das reticências. Escrevo como Marguerite Duras também escrevia que "escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído".

Como um rio tenho minhas nascentes e insurgências de onde brotam as raízes mais verdadeiras dos meus mais fingidos frutos. "Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim" (Cacaso). Olhe-me o gesto sonegado que verás o que digo. Escuta minhas ofegações que ouvirás o arfar do bafio das minhas desinquietações. Perceba o retirar das boca-fechadas que entenderás o linguajar das almas e o tinir das entranhas, inclusive as minhas. Somos todos feitos - sem exceção - de zumbidos, murmúrios e sussurros que transpiram invisíveis pelos estreitamentos de nossas superfícies. Ninguém é tão esfinge assim que um dia não possa ser decifrado. E por que ainda me acoberto? Por que me esconder se corro o risco de ser descoberto? Ou será que temo falar e não ser escutado? Será por isso, então, meu deus! será que me faço ser ignorado por medo de ser ignorado? Não fui feito para o desdém nem para ser desprezado. Sou não sabido pelos outros para não me tornar desconhecido. Prefiro ficar sozinho e assombrado em um quarto escuro do que gritar por alguém e ninguém vier me socorrer. A solidão dos espaços externos me apavora. Recolho-me ao calor da minha companhia para evitar o silêncio das multidões.

Não é fácil falar de mim, logo eu tão desprovido de me expor. Sei falar as palavras diárias, as mesmas e banais palavras costumeiras que pratico cotidianamente no mascarar de mim. Sei escrever textos pra me distrair e preencher vazios, então não me pergunte o que quero dizer, porém apenas veja por que escrevo. Talvez escreva, como diz Saramago, porque não quero morrer. Mas se não quero morrer porque me engano de viver? Ah! seria mais simples se minhas fachadas não fossem fechadas, e se minhas máscaras fossem viradas ao contrário. Todavia sou uma contradição desmedida ao recear aventuras e me aventurar em medos. Meu paradoxo? Ser exatamente quem não sou.

Basta, não adianta. Não consigo ir além das retóricas empoladas e decorativas nas quais refino sutilmente todas minhas pobrezas como se feito de ouro fosse. Se por fora sou barroco, por dentro sou campestre. Se me exagero de adornos é para dissimular meus desalinhos. Se me rebusco grandioso é pra proteger o menino. Se construo palácios é porque moro em casebres. Se me mostro abundante é apenas porque sou insignificante. Por isso me desculpem. Em meu vocabulário não tenho o termo mais certo. Ou talvez porque ainda não inventaram uma palavra que me defina e me redima. E assim continuo sendo uma inexprimibilidade à procura de algum significado, um personagem a mais em busca de um autor.

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 31/01/2022
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